O melhor pedaço da Maçã.

Sobre iPads, prensas hidráulicas, arte e mimimi

Comercial "Crush!", do iPad Pro (M4)

Sim, sabemos que esta deveria ser uma coluna sobre o Apple TV+. Esta semana, entretanto, pedirei licença para tratar de um assunto que não está totalmente relacionado ao serviço de streaming da Maçã — mas que, além de estar na boca do povo, trata de assuntos muito caros a este singelo espaço semanal: arte, criação e criatividade, produções audiovisuais e a interseção disso tudo com o mundo da tecnologia. Semana que vem, voltamos à nossa programação normal.

Num evento especial de março de 2011, no qual foi apresentada — olha só — a segunda geração do iPad, Steve Jobs, em uma das suas últimas keynotes, proferiu um pensamento que rapidamente tornou-se icônico.

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Está no DNA da Apple que a tecnologia, por conta própria, não é suficiente. É a tecnologia combinada com as artes liberais, combinada com as humanidades, que gera os resultados que fazem nossos corações cantarem.

Steve JoBs, cofundador e ex-CEO da Apple.

13 anos depois, o novo iPad Pro é fenomenal. Sim, todos nós já ouvimos que ele é o produto eletrônico mais fino já produzido pela Apple, que o chip M4 é o processador para consumidores finais mais rápido do mundo, que sua tela OLED 1Organic light-emitting diode, ou diodo emissor de luz orgânico. é um feito notável de engenharia. Também já ouvimos (aliás, desde gerações anteriores) que o software do iPad Pro não tem condições de aproveitar as maravilhas do seu hardware, o que coloca todas as nossas expectativas na próxima WWDC, daqui a menos de um mês.

Entretanto, desde o dia da sua apresentação, (quase) todo o frisson em torno do novo iPad Pro acabou se resumindo não à sua espessura inacreditável, ao seu poder de fogo absurdo ou à sua tela aparentemente milagrosa. Em vez disso, as atenções acabaram voltando-se ao seu… comercial de apresentação.

Se você não acompanhou o MacMagazine ou a imprensa tecnológica nos últimos dias, aí vai um breve resumo: o tal do comercial, intitulado “Crush!”, mostra uma pequena montanha de objetos — um trompete, um piano, uma câmera, um toca-discos, uma mesa de mixagem, um globo terrestre, um metrônomo, latas de tinta, um manequim humano para desenho, uma escultura… enfim, você pegou a ideia — sendo impiedosamente esmagados por uma prensa hidráulica até não sobrar absolutamente nada. E, quando a prensa se levanta, lá está ele: o novo iPad Pro.

YouTube video

Analisando em seu conceito mais básico, o comercial é excelente. A simples ideia de condensar todas essas formas — extremamente complexas e intrincadas — de expressão humana em um simples dispositivo é comunicada muito claramente, e ainda temos o bônus de transmitir a espessura finíssima do novo iPad Pro com a prensa hidráulica que achata absolutamente qualquer coisa. Entretanto, assistindo ao comercial, eu já sabia que a coisa iria desandar rapidamente para o lado da Apple. E desandou, mesmo.

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Após o lançamento da peça na internet (compartilhada, inclusive, pelo próprio Tim Cook em sua conta no Twitter X com grande entusiasmo), as reações majoritárias foram de ultraje. Por trás daquela ideia básica, superficial, as pessoas se incomodaram com um subtexto — que provavelmente nem foi colocado lá intencionalmente pelos profissionais criativos responsáveis pelo comercial — de destruição da arte, da criatividade e de tudo o que nos torna humanos.

Ver obras de arte e objetos tão queridos, que nos despertam tantas memórias boas, sendo sumariamente destruídos de fato não é um sentimento positivo em qualquer contexto, mas torna-se ainda mais incômodo quando o objetivo é fazer isso para vender um produto que, segundo sua fabricante, pode substituir todos eles. É como se a Apple estivesse dizendo que não precisamos mais dessa velharia (pinturas, música, escultura, arte em geral) em sua forma original, já que tudo agora pode residir na frieza do alumínio, do vidro e da inteligência artificial do novo iPad Pro.

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Também não contribui em nada o fato de que o comercial (e aí eu já tendo a considerar uma falha de concepção, mesmo) tem uma ambientação pesada, sombria, com uma fotografia escura e um cenário cavernoso, metálico, impessoal. Não sei bem o que os publicitários tinham em mente — no geral, o marketing das linhas Pro da Apple têm gostado bastante de porões, instalações secretas e ambientes escuros, como se quisesse dar a ideia de um esconderijo secreto de vilão Jamesbondiano no qual a mais alta tecnologia é desenvolvida. No meu conhecimento de publicidade, entretanto, não me parece a ideia mais salutar associar o nascimento de um produto tão milagroso, como a Apple quer que nós vejamos o novo iPad Pro, com um cenário digno de cativeiro de filme de ação dos anos 1980.

Nesse sentido, inclusive, não faltaram comparações entre “Crush!” e “1984”, o lendário comercial do Macintosh até hoje amplamente considerado um dos momentos mais inspirados da história da publicidade. A diferença é que, no comercial de 40 anos atrás, a Apple se colocava como a agente de disrupção, a atleta malhada com roupa colorida que destruía o gélido império azul e cinza dos usuários robotizados, controlados pelo todo-poderoso Grande Irmão (que, à época, simbolizava a toda-poderosa IBM). Bem, 40 anos depois, a Apple é a toda-poderosa, e o comercial do iPad Pro pode soar, dependendo dos ouvidos, como um deboche desse passado subversivo ou como um ato falho de admissão.

Para uma empresa fundada por dois homens que respiravam arte e cresceram no contexto da revolução contracultural dos anos 1960/70 (e, mais importante que isso, uma empresa que sempre abraçou os profissionais criativos e a arte como parte do seu DNA), realmente é compreensível que as pessoas se choquem com um comercial como “Crush!”. Como diria um certo Harvey Dent, ou você morre herói ou vive o suficiente para se transformar no vilão — mesmo que seja somente na semiótica de um desventurado comercial.

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Resumindo: a falha foi total, e a internet respondeu à altura. Desde Hugh Grant até o cineasta brasileiro Kléber Mendonça Filho, artistas do mundo inteiro (e aqui eu estou falando de pessoas que nunca entram nos assuntos tecnológicos) criticaram a peça. Colunistas de portais especializados, influentes, também não pouparam palavras negativas sobre o comercial.

Depois de virar saco de pancada na internet, a Apple seguiu à risca o protocolo do modo gestão de crise: pediu desculpas pelo comercial, admitiu que errou no tom e afirmou que não veiculará a peça na TV. Por outro lado, o vídeo segue online nos canais da empresa e no perfil de Tim Cook no X, o que pode sugerir que havia, desde o início, alguma intenção de marketing negativo, de espírito “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”… afinal de contas, querendo ou não, o comercial furou (e muito!) a bolha tecnológica. Mas essas são apenas conjecturas minhas, claro.

O que mais tem me chamado atenção nas últimas 24 horas (desde que a Apple emitiu o pedido de desculpas), entretanto, são as reações à reação. Isto é, o efeito contrário: um grupo bastante focal de pessoas defendendo o comercial, acusando a internet de #mimimi e exclamando frases do tipo “o mundo está muito chato”, “não se pode mais falar sobre nada”, “geração que se ofende com qualquer coisa” e outros dizeres comumente associados a coisas bem mais espinhosas.

Como alguém que comete com frequência o crime de dar (e responder a) opiniões na internet, frequentemente me choca como os ventos da atualidade — e por atualidade eu quero dizer polarização, bolhas, pós-verdade, ânimos à flor da pele — fizeram as pessoas passarem a confundir discordância com ofensa, questionamento com acinte, criticidade com mimimi. Não são poucas as vezes que já vi, seja como participante ou espectador, pessoas usarem o argumento do “respeite minha opinião” quando suas opiniões sequer foram desrespeitadas, e sim meramente rebatidas ou questionadas. Como se a internet ideal fosse uma câmara de eco, e não o fórum global de debate de ideias, visões e pensamentos que ela poderia ser.

Por que estou falando isso? Porque, no caso da Apple e da bendita publicidade do iPad Pro, ninguém em plenas faculdades mentais se sentiu ofendido pelo comercial. Não é uma questão pessoal, não é uma questão de ofensa, é uma questão de senso crítico — de analisar os códigos empregados pela obra, de entender o que está sendo comunicado ali e, a partir disso, formar uma opinião e extrapolar a discussão do pontual (a propaganda) para o amplo. O amplo, no caso, é a maquinização do pensamento, a invasão das IAs na produção artística, o desprezo à arte e à cultura… é o que você quiser que seja.

Reduzir essas reflexões a um simples “mimimi” me soa como algo na mesma linha dos tecnicistas que condenam o ensino de história, filosofia, sociologia e outras matérias das ciências humanas nos colégios, porque esses seriam saberes “inúteis” — como se seres humanos estivessem destinados apenas à utilidade, no sentido de produção capitalista da palavra, de serem pecinhas no grande mecanismo do sistema.

E veja bem: você pode discordar de tudo isso o que eu estou dizendo aqui. De fato, eu quero que você discorde! Seria o ápice da hipocrisia afirmar o contrário. Meu problema com tudo o que aconteceu nos últimos dias é que, ao começarem os gritos de “MIMIMI!”, esvaziou-se qualquer possibilidade de uma discussão sobre o tema. Afinal, não existe debate se um dos lados sequer considera o outro qualificado para começar esse debate. E aí está a grande oportunidade perdida: o comercial do iPad Pro poderia ser o início de uma ótima reflexão, mas ela acabou se perdendo no ruído das redes.

Notas de rodapé

  • 1
    Organic light-emitting diode, ou diodo emissor de luz orgânico.

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