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Humane Ai Pin, rabbit r1 e o vaporware da era pós-Kickstarter

Salvo raras exceções, o Kickstarter sempre foi um grande catálogo de boas ideias que, mais cedo ou mais tarde, descobriram que havia um bom motivo para aquele produto ainda não existir.

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O roteiro dos sucessos inesperados dos dispositivos tecnológicos por lá sempre foi parecido: alguém inventava um produto bastante criativo e interessante, o projeto viralizava, a quantidade de apoios coletivos ultrapassava em 10x, 20x, 100x o objetivo inicial, e aí… o pesadelo começava.

O produto atrasava, os criadores do projeto gravavam um vídeo pedindo desculpas e prometendo uma nova data de entrega, o produto perdia essa nova data de entrega e, quando não era cancelado, as poucas primeiras unidades entregues meses (ou anos!) depois do previsto ficavam bem distantes do que havia sido prometido lá no começo.

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Nesse meio do caminho, muita coisa acontecia: os idealizadores descobriam que a tecnologia que eles prometiam era impossível de funcionar na prática, ou então que seria impossível fabricar o produto com o custo previsto sem abrir mão de componentes-chave ou de materiais premium prometidos quando o projeto ainda era só uma ideia, ou então eram apenas maus gestores, sem experiência ou verdadeira compreensão do mercado no qual pretendiam atuar. Não raro, eram todas as anteriores.

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O que não quer dizer que o Kickstarter não tenha dado origem a bons produtos. O relógio Pebble Time, por exemplo, foi apresentado em 2011 e, no ano seguinte, se tornou o projeto mais apoiado no site até hoje, com mais de US$20 milhões arrecadados. Sucesso absoluto, certo?

Bem… não exatamente. Em 2016 1Ano seguinte ao lançamento do Apple Watch, o que definitivamente não foi uma coincidência., a empresa pegou os clientes de surpresa ao anunciar o encerramento imediato das atividades, do suporte e da fabricação de novos produtos, junto à sua venda para a Fitbit.

Ainda assim, o Pebble marcou época por ser o primeiro verdadeiro relógio conectado do mercado, oferecendo uma impressionante (para 2012) integração básica com celulares para exibir notificações, emails, SMS, ações da bolsa, navegação curva a curva, acompanhamento de exercícios e de sono, chamadas telefônicas e mais.

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Isso significa que o Apple Watch não existiria hoje se não fosse pelo Pebble? É claro que não significa. Mas considerando que tanto Tim Cook quanto Jony Ive confirmaram ao jornalista David Muir que o projeto do relógio se iniciou após o falecimento de Steve Jobs, em 2011, não é um exagero dizer que o Pebble tenha, no mínimo, acelerado o despertar do interesse do mercado pelo segmento.

Acredito que algo parecido esteja acontecendo no recém-nascido segmento de pequenos hardwares prematuros equipados com inteligência artificial que temos visto pipocar por aí, mais especificamente, é claro, o Humane Ai Pin e o rabbit r1.

Expectativa vs. realidade

Apesar de terem propostas e formatos bem diferentes, há muitos paralelos entre o Humane Ai Pin e o rabbit r1 até o momento.

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Primeiro, a mensagem. Ambos foram apresentados como substitutos do smartphone, mas depois mudaram o tom ao perceber o óbvio, que é o fato de que ninguém quer realmente abrir mão do smartphone neste momento.

À esquerda, anúncio da Humane compara usuários de smartphones a zumbis. À direita, Jesse Lyu, diretor executivo da rabbit, classifica aplicativos como algo do passado.

Depois, a apresentação. Ambos foram anunciados por meio de vídeos que demonstravam um fluxo contínuo, perfeito e eficiente de interação com assistentes virtuais apoiados em LLMs 2Large language models, ou modelos de linguagem largos., corretamente identificando objetos, quantificando calorias ou até planejando viagens com direito à compra de passagens aéreas.

Mais do que isso, ambos prometiam exatamente tudo o que sempre quisemos da Siri e do Google Assistente, mas que nunca nos foi entregue.

À esquerda, o Humane Ai Pin consulta o preço de um livro na internet por meio de visão computacional. À direita, o rabbit r1 consulta e compra passagens aéreas.

Em seguida, o ceticismo. Ambos passaram meses refutando a premissa da pergunta “Por que isso não é um app?”, promovendo a noção de que o produto seria o primeiro a ser idealizado para a era da IA generativa, superando com sobra a utilidade dos nossos telefones para múltiplas tarefas.

Por fim, a decepção.

No caso do Humane Ai Pin, o principal problema está na experiência. Do superaquecimento frequente à inconsistência do desempenho, quem já usou o dispositivo tende a concluir que ele simplesmente não entrega o que havia prometido, apesar de ser uma boa tentativa de proporcionar interações com assistentes virtuais sem a necessidade de uma tela.

Já no caso do rabbit r1, é até difícil apontar um problema principal. Comparado ao que a rabbit havia prometido, ele é todo ruim. Sua integração com os (atualmente, apenas quatro) apps compatíveis é falha, a visão computacional é ruim, a autonomia da bateria era quase nula antes de um update emergencial e, para piorar, eles omitiram o fato de que o rabbitOS é, na verdade, basicamente um app de Android 3O que, apesar de minar o argumento de ser algo AI-first, eu sinceramente não vejo como o problema que muitos defenderam ser. É mais vergonhoso ter ficado a impressão de que eles tentaram o fato, do que o fato em si..

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Vídeo de suposto APK do rabbit r1 rodando em um dispositivo Android.

Mas por que, então, não lançar um app?

Isso nenhuma das empresas respondeu ainda de forma convincente. A verdade é que mesmo no Android, que é mais aberto, nenhum app de terceiro teria condições de oferecer a experiência inteligente, bem-acabada, integrada e rápida de IA generativa que tanto o Ai Pin quanto o r1 prometeram (e, agora sabemos, não cumpriram). Olhando por esse lado, faz sentido a intenção de construir o próprio hardware para tirar o máximo proveito do próprio software. É a fórmula do iPhone, afinal.

E aqui está a chave. Antes de prometer tudo isso para nós, eles também haviam prometido tudo isso para os investidores. Foi com o discurso de “construir o próximo iPhone” que a Humane levantou US$30 milhões em 2020, e foi com a proposta de “construir um sistema operacional personalizado equipado com linguagem natural” que a rabbit levantou US$20 milhões em 2023.

Certamente foi infinitamente mais fácil convencer os investidores de risco a abrirem a carteira para uma empresa que faria o próprio hardware, equipado com o próprio software, ambos pensados do zero para a era das IAs, do que fazer apenas mais um app de IA que concorreria com uma infinidade de outros aplicativos de IA na App Store e na Play Store, sem acesso ou integração a funcionalidades básicas do sistema.

Ou, nas palavras de Jesse Lyu, diretor executivo da rabbit, para o Business Insider em janeiro:

Em um mundo perfeito, amanhã, a Siri vai fazer algo assim, ou até melhor. Mas da minha perspectiva, como eu quero construir o meu negócio? […] Sim, você pode ser bem-sucedido na App Store, mas falta uma sensação de segurança. Tipo, e se amanhã sair um app melhor? Pense em filtros do Instagram. Não há fidelidade nenhuma!

Eu não sei quanta confiança inspira dizer que você fez um hardware porque ficou com medo de concorrer com outros apps, mas parece ter sido isso que ele disse.

Em retrospecto, agora que todos nós conhecemos as deficiências do r1, talvez Lyu já soubesse em janeiro que ele estava prestes a lançar algo terrivelmente pouco competitivo, e que sua iniciativa teria ainda menos chances de sucesso caso tivesse sido concebido apenas como um app.

Resumo da ópera

É uma pena que tanto o Ai Pin quanto o r1 tenham sido tão decepcionantes em comparação às possibilidades empolgantes que eles prometiam, e à experiência fluida que eles demonstravam nos próprios vídeos até pouquíssimas semanas atrás. Os dois dispositivos falham tão miseravelmente até mesmo nos aspectos mais básicos do que se propõem a fazer, que esvaziam até mesmo o argumento de que eles poderiam ter dado mais certo se tivessem a possibilidade de se conectar aos nossos telefones.

Assistindo novamente às apresentações iniciais do Ai Pin e do r1, é bastante nítido que ambos tinham a sincera intenção de entregar algo verdadeiramente novo, útil e interessante, assim como a Pebble faz há mais de uma década. A diferença é que a Pebble cumpriu o que prometeu, enquanto a Humane e a rabbit descobriram a mesma coisa que a maioria dos líderes de projetos do Kickstarter passaram os últimos 15 anos descobrindo: fazer hardware não é fácil e, se ninguém lançou ainda um produto igual ao seu, deve existir um ótimo motivo.

A boa notícia é que, se o ciclo do Pebble for se repetir aqui, falta pouco para conhecermos os primeiros produtos verdadeiramente satisfatórios de IA generativa, agora que a Humane e a rabbit inauguraram e trouxeram interesse para o segmento. A minha aposta está em óculos conectados como o melhor dispositivo para se utilizar uma IA generativa embarcada, mas por ora parece que os telefones irão tomar a frente.

Sinceramente, independentemente do formato, contanto que realmente funcione, eu já me darei por satisfeito.

Notas de rodapé

  • 1
    Ano seguinte ao lançamento do Apple Watch, o que definitivamente não foi uma coincidência.
  • 2
    Large language models, ou modelos de linguagem largos.
  • 3
    O que, apesar de minar o argumento de ser algo AI-first, eu sinceramente não vejo como o problema que muitos defenderam ser. É mais vergonhoso ter ficado a impressão de que eles tentaram o fato, do que o fato em si.

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