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Assassinos da Lua das Flores

Crítica: “Killers of the Flower Moon” (ou: como contar uma história é construir uma nação)

Durante os anos de 1918 a 1931, ao menos 60 (mas possivelmente centenas de) pessoas da Nação Osage foram assassinadas no estado de Oklahoma, nos Estados Unidos, por criminosos que tinham o objetivo de se apropriar da fortuna descoberta na reserva indígena, repleta de petróleo em seu subsolo.

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Em um resumo extremamente conciso, frio e limitante, estes são os fatos. Outra coisa, completamente diferente, é contar essa história — e ela já foi contada diversas vezes.

Ainda nos anos 1930, o programa radiofônico “The Lucky Strike Show” dedicou um dos seus primeiros episódios a dramatizar a tragédia, colocando ênfase na investigação feita pelo (então recém-formado) FBI sobre o caso. J. Edgar Hoover em pessoa deu sinal verde para a transmissão, considerada uma belíssima propaganda de construção de imagem para a agência.

Em 1959, James Stewart estrelou “A História do F.B.I.”, filme baseado num livro de mesmo nome sobre a origem do Departamento Federal de Investigação. Embora a narrativa cubra outras passagens das primeiras décadas da agência, boa parte da história centra-se, mais uma vez, nos crimes contra a Nação Osage — e, mais uma vez, temos um foco na investigação dos assassinatos e na dinâmica entre os agentes da lei e os suspeitos.

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Em 2017, o jornalista David Grann lançou “Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, morte e a origem do FBI”, livro-reportagem sobre os crimes. Como o próprio título sugere, temos o Federal Bureau Investigation mais uma vez no centro das atenções — muito embora, é bom citar, o livro de Grann pinte um cenário um pouco menos lisonjeiro para a agência, sugerindo que as ações dos (supostamente) honrados e competentíssimos homens da lei talvez não tenham sido tão honrosas ou competentes assim.

Essa história — ou melhor, essas histórias — encontram-se fincadas firmemente em um lugar profundo, extremamente complexo, da construção da identidade dos EUA enquanto país. Está tudo aqui: orgulhos nacionais, massacres indígenas, terras sagradas, imigrantes, petróleo, Ku Klux Klan, o sonho americano, dinheiro, poder e sangue, muito sangue.

Corta para 2020, quando tivemos as primeiras notícias de que Martin Scorsese — sim, aquele Martin Scorsese, estrela do TikTok e, incidentalmente, o maior diretor americano vivo — adaptaria o livro de David Grann para o cinema sob a produção da Apple e da Paramount.

Era inevitável, era perfeitamente óbvio: o cineasta que passou a sua vida a filmar homens brancos cometendo crimes teria, aqui, o cenário perfeito para exercer a sua especialidade em potência máxima. Ora, na época da pré-produção, nós (assim como toda a imprensa) até chegamos a noticiar que Jesse Plemons, no papel de um agente do FBI, seria o protagonista do longa — porque imaginávamos que, naturalmente, o filme seguiria com alguma fidelidade o foco e a estrutura do livro. [Spoiler: Plemons só aparece em cena depois de 2 horas de projeção.]

Em resumo, Scorsese poderia ter feito um filme sobre o FBI contra os homens brancos malvados e certamente teríamos um prato cheio em nossas telas. Mas Scorsese está velho, angustiado com a própria mortalidade e preocupado com o fato de não ter mais tempo para contar as histórias que tem dentro de si.

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E é por isso que o seu “Killers of the Flower Moon” (ou “Assassinos da Lua das Flores”, em português), que estreou nos cinemas do mundo todo na última sexta-feira (20/10) e chegará em data ainda não definida ao Apple TV+, não é nada disso que esperávamos: é, em vez disso, uma das conquistas mais monumentais — e assombrosamente belas — de uma das carreiras mais notáveis da história do cinema.

Sim, é um filme sobre homens brancos cometendo crimes. Mas, muito mais que isso, é um filme sobre a Nação Osage, sobre racismo e opressão, sobre maldade, sobre os EUA, sobre a arte de contar histórias e até um pouquinho sobre o próprio Scorsese.

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A primeira decisão sábia do filme é fincar seu centro dramático em um trio de personagens: Mollie (Lily Gladstone), integrante da Nação Osage que vê sua família ser progressivamente destroçada pela série de crimes, Bill Hale (Robert De Niro, mais em forma do que nunca), rancheiro milionário extremamente benquisto na comunidade indígena pelas suas contribuições, e Ernest (Leonardo DiCaprio), sobrinho pouco brilhante de Hale que retorna da Primeira Guerra e, sob a sugestão do tio, casa-se com Mollie como parte de um plano para eventualmente herdar a sua fortuna.

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Apesar de todo o burburinho sobre “Killers” ser supostamente o primeiro faroeste da carreira de Scorsese, verdade seja dita: tirando a ambientação e as eventuais panorâmicas de tirar o fôlego (o diretor de fotografia Rodrigo Prieto está no auge da sua capacidade), o filme não tem quase nada do que costumamos associar aos westerns. “Killers” é, em seu âmago, a história do romance entre Mollie e Ernest — ou melhor, a história de um romance que já nasce morto, que nasce como farsa e termina como tragédia, onde qualquer semente de amor é progressivamente minada (e contaminada) por forças, internas e externas, motivadas por sentimentos muito menos enobrecedores.

Que bom, então, que temos uma dupla brilhante responsável pelo casal. DiCaprio traz ao seu Ernest uma vulnerabilidade já característica dos seus papéis, mas numa roupagem completamente diferente: ele é intelectualmente limitado, facilmente influenciável e mestre em tomar decisões moralmente questionáveis, mas ao mesmo tempo imbuído de um amor genuíno por sua esposa e um senso de responsabilidade por sua família. O papel é complexo e a ruína moral de Ernest é demonstrada pelo ator com uma verve que, em outras faces, poderia parecer caricatural, mas com DiCaprio é simplesmente implacável.

"Killers of the Flower Moon"

Por outro lado, o coração pulsante de “Killers” reside em Gladstone, a grande revelação do longa (para quem não viu “Certas Mulheres”, pelo menos) e dona de uma das performances mais silenciosamente arrebatadoras do cinema nos últimos anos. É certo que já se tornou clichê caracterizar atuações excelentes como “forças da natureza”, mas é impossível não evocar a expressão para falar sobre o que Gladstone faz aqui: apenas com o olhar, a atriz é capaz de refletir os horrores indizíveis sofridos por Mollie e a carga ancestral poderosíssima da sua personagem. É a antítese do overacting (porém nunca underacting) e é simplesmente fenomenal.

Falando em horrores indizíveis, importante citar também a decisão criativa de nunca glamorizar (ou mesmo se concentrar muito) nas violências sofridas pelos membros da Nação Osage. Scorsese confia na capacidade de empatia da sua audiência para se demorar nas reações dos ocorridos, não nos ocorridos em si — e, para um cineasta que no passado já foi acusado de estilizar (e até glorificar) atos terríveis de crueldade, esta é claramente uma escolha muito intencional.

A dor e o desespero perpassam cada quadro do longa, e quando a violência é enfim mostrada, ela chega de maneira crua, rápida e sem rodeios, o que a torna ainda mais chocante. Mesmo com pouca violência gráfica, “Killers” é um dos filmes mais brutais da carreira de Scorsese — e, lembrem-se, estamos falando do homem que dirigiu “Taxi Driver” e “Cabo do Medo”.

A trilha do recém-falecido Robbie Robertson (lendário fundador da The Band e colaborador eventual de Scorsese, a quem o filme é dedicado) é perfeita para pontuar essa atmosfera de tensão e horror, com uma linha de baixo puxada para o blues que nunca é intrusiva, mas está quase sempre presente — por vezes, misturando-se com a própria ambientação sonora — como um prenúncio do assombro que está por vir.

Inevitável, nesse sentido, citar o elefante na sala: as tais das 3h26 de duração que, por algum motivo, parecem arrepiar todos os cabelos da nuca de pessoas que passam 8 horas seguidas de um domingo maratonando uma série qualquer. Não se preocupem: o tamanho formidável do longa é absolutamente justificado. Scorsese opera num modo épico minimalista, se me permitem, que usa cada segundo desse tempo para mergulhar o espectador na história, no psicológico dos personagens e na atmosfera de horror acima citada. Assistir a “Killers” é, sim, uma jornada longa, cansativa e quase sempre causadora de indignação, mas é justamente esse o propósito.


Em alma, “Killers of the Flower Moon” é uma destilação de tudo o que Scorsese fez até hoje: uma meditação sobre poder e ganância, a ruína moral das pessoas que cedem a essa tentação e o papel disso tudo na construção dos EUA (ou da civilização ocidental como um todo). Mas “Killers of the Flower Moon” é especial porque vai além disso: vai além mostrando o outro lado dessa moeda, mergulhando fundo na perspectiva da injustiça e demonstrando um enorme respeito pelas vítimas apagadas pela história. Ou melhor, pelas histórias.

Tudo isso nos leva à cena final do filme, que eu não descreverei por razões óbvias de spoiler, mas que nos traz de volta ao início desse texto: “Killers of the Flower Moon” é sobre contar histórias — ou, mais precisamente, sobre quem conta essas histórias e como elas ajudam a construir algo que está para além delas. Nessa cena final, que é provavelmente um dos encerramentos mais magistrais vistos em um filme hollywoodiano nos últimos anos, nós finalmente entendemos quem está contando essa história, e por que ela está sendo contada de novo.

E que bom que está.

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