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iPad: pensamos diferente?

por Dhyan Shanasa

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O que chamamos de progresso é simplesmente a substituição de um aborrecimento por outro aborrecimento.

Havelock Ellis.

A ideia acima é tão óbvia que já deve ter ocorrido até mesmo, de quando em quando, em algum ministro de estado. Está certo e basicamente ninguém contesta: o iPad foi uma surpresa surpreendente — que nos perdoem e redundância —, e de todas as novidades da atualidade foi a que mais frustrou os usuários Apple (e, por incrível que pareça, até mesmo a concorrência).

Muito foi dito desde o primeiro rumor sobre o tão sonhado iTablet que, segundo a imaginação popular — arrematada com toques tremendos de Photoshop —, dizia que o gadget seria um misto de duas tecnologias diametralmente opostas: iPhone e iMac; uma contendo as maravilhas multi-touch portáteis, outra as maravilhas da solidez arquitetônica operacional.

A proposta não era ruim; todavia, quando a turba fala demais, é pouco provável que aquele “algo” seja de fato o que se prega. Assim, acompanhamos meses se arrastando de ansiedade e muita conversa fiada pela web, em que vários designers mostravam ideias interessantes — outras vezes nem tanto — de como deveria ser o iTablet, meses em que milhares de usuários Apple discutiam as funcionalidades ilusórias de um aparelho nem sequer inventado, em que incontáveis sujeitos incomodados com o possível surgimento de uma máquina revolucionária perdiam seu precioso tempo com difamações inúteis para ambos.

Que ninguém se engane: o que faz um homem ser reconhecido por sua genialidade são suas ideias únicas, e não a aceitação de palpites alheios. Seguindo isso, pessoalmente jamais trocaria as criações de uma empresa como a Apple pela conversa palavrosa de Bill Gates, pois a vida e obra deste último tem sido um espinho no calcanhar da humanidade, ao aumentar consideravelmente os aborrecimentos a que já tínhamos direito.

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Foi então que o dia do tão esperado lançamento chegou e todo o mundo da informática virou-se para ver a nova criação da Apple e deliciar-se com algo que parecia — em sonho — o Éden tecnológico. Como a Apple consegue criar essa esfera quase mítica que deixa pessoas totalmente alienadas por meses é uma coisa que mereceria a atenção de Jung. Vi poucas empresas na vida que conseguiram arrebatar tantas mentes de uma só vez ao ponto de elas se desligarem da sensatez de seus cotidianos.

Quando Steve Jobs disse faltar algo entre um iPhone e um MacBook, retirou de baixo de um paninho uma tablet superfina a qual chamou orgulhosamente de “iPad”. O público fez um tremendo “ohhhh”, seguido de aplausos constrangedores. Por quê? Pois visualmente o iPad já não agradara a maioria, que o chamou de “iPod touch gigante”, e, quando fervorosos concorrentes, mostravam os dentes faceiros com a tremenda mancada. Pouco depois a decepção aumentou entre o público ao perceber que ele não rodava Mac OS X, não tinha uma iSight, não possuía multi-tarefa, não era Core 2 Duo, não rodaria Final Cut, e, como diria um amigo, “não faria videoconferência intergaláctica”, coisa espantosa dentre tantas outras ditas por usuários frustrados.

No meio de toda a tagarelice pós-lançamento, poucas pessoas conseguiram de fato manter o bom senso e fazer críticas sensatas ao iPad — e não me refiro ao Hitler no YouTube —, pois a grande maioria, como é de se esperar, agarra-se aos boatos e esquece que uma empresa não pode ser movida pelo gosto popular única e exclusivamente. Pareceu então que o slogan “Pense Diferente” da Apple teria caído ao solo de forma ruidosa.

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Mas não é bem assim. Disseram certa vez que “pensar é estar doente dos olhos”; então, será que nós mesmos, grandes geradores de sonhos, pensamentos e, inevitavelmente, de boatos, estamos nos tornando doentes? Será que não compreendemos mais profundamente nossa própria natureza a ponto de ignorar nosso medonho anseio de sermos agradados? Gastamos tantos meses maquinando, inventando, falando, pensando de forma engenhosa as múltiplas facetas de um mecanismo que, quando ele surge, não o enxergamos tal como é.

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Não abandonamos a “ideia surreal” inventada pelo pensamento mútuo ocioso. Enxergamos apenas o que ele não tem em correspondência ao nosso profundo desejo do que ele deveria ter. Passamos, então, a falar invertidos ao que falávamos, e, ao invés de exaltá-lo como antes, puxamo-lo para baixo, ao invés de perceber as funcionalidades práticas, reais, fundamentadas, preferimos emburrar-nos em algum fórum e perder nosso tempo com debates tolos que, com toda certeza, não acrescentarão nenhuma ênfase ao já fatídico iPad.

A Apple tem como slogan seu o “Pense Diferente”, e é exatamente isso o que ela faz. Ela pensa diferente ao ponto de surpreender — positiva ou negativamente — seus próprios usuários. Mas que ninguém se esqueça do tremendo esforço cerebral que existe em criar semelhante coisa, e que dentro em breve muitos estarão com seus iPads sobre a mesa esquecendo-se que meses antes o infortúnio da frustração os havia coagido a enxergar além da doença dos olhos que pensam em demasia.

Creio que a frase de Havelock Ellis, no início do artigo, seja verdadeira pela metade: o aborrecimento existe, mas é e sempre será passageiro, e só existirá enquanto houver o conceito de “progresso” embutido na mente do Mundo como algo previsível e plenamente dominável pelo público.

Com toda a certeza, o que chamamos de progresso é seguramente o maior avanço para chatos já inventado.

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