O melhor pedaço da Maçã.
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Teclado do Mac iluminado

O significado de “liberdade de expressão” nas redes sociais pode estar prestes a mudar

No fim do ano passado, o sempre brilhante crítico de cinema PH Santos publicou em seu canal do YouTube um interessante vídeo o qual, ao mesmo tempo que foi preciso (como PH sempre é) na análise da armadilha que a Marvel criou para si mesma ao demorar para tornar as suas histórias principais mais inclusivas, também explorou a previsível rejeição da parcela do público que acha que tem propriedade exclusiva sobre seus assuntos de interesse.

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Encorajados pelo título e pela imagem de destaque, os incansáveis intolerantes que rejeitam qualquer sinal de representatividade em… bem… tudo, tomaram imediatamente a área de comentários para enaltecer a aparente crítica à diversidade promovida pela Marvel em suas obras mais recentes. Quem assistiu ao vídeo, porém, viu que a crítica era, na verdade, em cima justamente desse tipo de público e de comportamento.

YouTube video
PH Santos: Marvel se lascou (ou o problema do Marvel Spotlight).

Alguns dias depois, PH comentou toda a situação. Segundo ele, o uso da palavra “lacrou” na imagem de destaque do vídeo havia sido bastante intencional. Ele sabia que isso funcionaria como um gatilho para atrair os tipos mais previsíveis que patrulham a internet em busca de qualquer oportunidade de despejar suas opiniões rasas e reducionistas. E assim foi.

No fim das contas, essas pessoas exemplificaram nos comentários o exato comportamento descerebrado que PH havia abordado no vídeo. Aqui vai um comentário final dele sobre a coisa toda:

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A sociedade contemporânea […] é marcada por um individualismo exacerbado e uma crescente alienação do outro. Vivemos em bolhas tecnológicas criadas pelas redes sociais e por outras plataformas digitais que reforçam nossas próprias opiniões e gostos o tempo inteiro, enquanto filtram e excluem o que é divergente ou desconhecido.

Bingo.

Dois processos, um veredito

Nos últimos dias, pensei muito sobre o video do PH, por conta de dois processos que vêm sendo julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Ambos envolvem redes sociais e trazem palavras carregadas como “moderação”, “liberdade de expressão” e “censura”.

Também em ambos, qualquer que seja o veredito, ele terá um impacto direto e imediato no regramento do discurso online.

O primeiro caso, Moody v. NetChoice, LLC, é resultado de uma lei proposta por Ron DeSantis (governador da Flórida) em reação ao banimento das contas sociais de Donald Trump nas redes sociais 1Além da remoção do app Parler da App Store e da Play Store. como consequência do ataque ao Capitólio americano em 6 de janeiro de 2021.

Com a lei, as redes sociais ficaram proibidas (sob pena de multa diária de US$250.000) de banirem por mais de 60 dias as contas de candidatos a cargos políticos, ou contas de veículos/plataformas de comunicação com mais de 50.000 assinantes ou 100.000 usuários mensais.

Já o caso NetChoice, LLC v. Paxton vem do Texas. Também catalisado pelas consequências do 6/1, o estado aprovou uma lei que proibiu as redes sociais de removerem, moderarem ou sinalizarem postagens de usuários texanos com base em “pontos de vista”, com algumas exceções 2A título de informação, negacionismo do holocausto (crime previsto em lei em 19 países) e desinformação sobre vacinas se tornaram protegidos por lei..

Nos dois casos, os grupos CCIA 3Computer & Communications Industry Association, ou, Associação da Indústria de Computadores e Comunicação. e NetChoice abriram processos contra os estados para bloquear as leis. No processo contra o Texas, os grupos venceram. No contra a Flórida, os grupos perderam. Todos entraram com recursos e, como consequência disso, os casos foram encaminhados à Suprema Corte dos EUA.

Para entender mais a fundo os pormenores dos dois casos, recomendo a leitura desse excelente guia feito por Daphne Keller, diretora do programa de regulamentação de plataformas, no Centro de Política Cibernética da Universidade de Stanford.

O gatilho da censura

Quem está na internet há mais tempo sabe que não é de hoje que há quem opte por desrespeitar as regras de convivência definidas por uma comunidade, para depois acusar a comunidade de perseguição frente às consequências dos próprios atos.

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Em abril de 2014, muito antes de tudo o que vimos acontecer nas redes sociais nos últimos anos, Randall Munroe (responsável pela clássica tirinha xkcd) publicou o seguinte quadrinho, cuja famosa versão original você encontra aqui.

Nos últimos anos, as questões envolvendo essa confusão acerca do significado de liberdade de expressão em redes sociais se exacerbaram, especialmente nos EUA 4Aqui vai o link para a chamada Bill of Rights, que contém a Primeira Emenda à Constituição do país, definindo o significado de liberdade de expressão por lá. e no Brasil 5Aqui vai o link para a Constituição brasileira. A liberdade de expressão é abordada no artigo 5º..

De um lado, pessoas que não seguem os termos de uso das plataformas se dizem perseguidas. De outro, pessoas acusam as plataformas de não fazerem o suficiente para punir o primeiro grupo adequadamente.

Já as redes se refugiam sob uma regulamentação da legislação americana chamada Seção 230, que as exime de responsabilidade legal sobre o conteúdo que seus usuário publicam (inclusive quando esses conteúdos são promovidos por meio de algoritmos de recomendação, o que é um absurdo).

E o que esse caso tem a ver com o vídeo do PH? Pois bem. Minha impressão é que, assim como “lacrar” virou um ímã para aqueles que exprobam qualquer conteúdo ou assunto que não seja voltado para si, termos como “liberdade de expressão” passaram a ter o mesmo efeito para quem confunde violência e desinformação com direito à expressão de opinião, e depois clama incessantemente na TV, no rádio, em revistas, nos jornais, em grupos de WhatsApp/Telegram, em sites, em entrevistas, nas redes sociais, em newsletters, nas áreas de comentários, nas postagens, nos Stories, em tweets e nos podcasts que está sendo… silenciado.

As próprias leis da Flórida e do Texas parecem utilizar termos como “censura” e “liberdade de expressão” de uma forma bastante intencional, tal qual PH utilizou “lacrou” em seu vídeo, sabendo que isso polarizaria uma delicada discussão que raramente fica sob controle.

Poucas vezes vi debates produtivos sobre a necessidade (ou falta dela) de um novo conjunto de regras para redes sociais. Via de regra, logo aparece alguém, geralmente anônimo e/ou mal-informado, que sequestra a discussão com agressões e acusações vazias, acabando com qualquer chance de haver uma troca produtiva e civilizada de ideias.

Tá, mas e os processos?

No dia 26 de fevereiro, a Suprema Corte americana escutou os depoimentos de todos os envolvidos nos processos das leis da Flórida e do Texas.

De um lado, a Constituição americana define que, quando uma rede social opta por moderar ou excluir um comentário, ela está exercendo sua própria liberdade de expressão 6Esse é um conceito que pode ser desafiador para algumas pessoas absorverem. Mas o fato de a Suprema Corte americana não ter uma resposta definitiva para isso é uma boa dica de que, talvez, o problema seja mais complexo do que alguns possam imaginar que ele seja..

Sob essa ótica, obrigá-las por lei a manter uma publicação no ar seria anticonstitucional, comparável ao governo obrigar um canal de TV a receber um determinado convidado para exibir uma entrevista à força, ou obrigar um veículo a publicar um determinado artigo de opinião.

Do outro lado, os estados argumentaram que as grandes redes sociais já transcenderam a noção de que elas são só comunidades controladas por empresas privadas e se tornaram elementos básicos da sociedade moderna. Sob essa ótica, excluir alguém de uma grande plataforma social seria privar-lhe de um aspecto essencial da sociedade, equivalente a impedir seu discurso em praça pública 7Situação para qual o verdadeiro conceito de liberdade de expressão foi criado, para começo de conversa..

Ao final de múltiplas horas de depoimentos, argumentos e contra-argumentos (cuja transcrição completa você encontra aqui), a Suprema Corte concluiu que… esse é um problema bem difícil de resolver. Lá pelas tantas, a Corte se deu conta de que sua decisão sobre redes sociais terá múltiplos impactos e desdobramentos imprevistos, até mesmo em operações de empresas distantes das plataformas em questão, como Uber, Etsy e Amazon Web Services.

Dependendo do que a Suprema Corte decidir, o Etsy, por exemplo, poderia ser obrigado a passar a permitir a venda de produtos incentivando o negacionismo do holocausto. Ou a Uber, por exemplo, poderia passar a ter cobertura legal para rejeitar serviço a determinados grupos de usuários com base em algum tipo de crença. Ou a Amazon perderia a autonomia sobre o que ela pode hospedar em seus próprios servidores. Complicado, certo?

Por causa da profundidade da questão e desses possíveis desdobramentos menos óbvios, a Suprema Corte concluiu que precisará de bem mais tempo do que ela havia previsto inicialmente para avaliar os casos e dar um parecer. Por isso, a expectativa é que ela leve pelo menos até junho para voltar a se manifestar sobre isso.

De modo geral, ela pareceu mais favorável às plataformas sociais, do que aos argumentos dos estados americanos. Ainda assim, há quem suspeite (como é o caso de Keller) que talvez ela opte por dar a vitória aos estados, obrigando-os ao mesmo tempo a adotar regras bem mais brandas na legislação, potencialmente neutralizando seus objetivos mais radicais de obrigar as redes sociais a manterem no ar praticamente qualquer tipo de discurso.

Como é aquela declaração estapafúrdia? “Nem quem ganhar, nem perder, vai ganhar ou perder…”

Independentemente do resultado, a Corte voltou a afirmar que a Seção 230 precisa ser revista urgentemente, pois ela não funciona mais em 2024, dado que foi aprovada levando em conta o cenário de 1996. Esse, inclusive, é um dos poucos pontos sobre o qual todos os envolvidos concordam, apesar de discordarem diametralmente da forma como a Seção deverá ser ajustada. É claro.

Resumo da ópera

Quando o assunto é o mercado de redes sociais, esses dois casos são, talvez, os mais importantes em décadas. Saber como a justiça americana enxerga, em 2024, o equilíbrio entre a liberdade que cada pessoa tem de se expressar, e a responsabilidade que as empresas e o próprio governo têm de proporcionar ambientes seguros para a troca livre de informações e de ideias, será algo essencial para moldar o futuro da forma como nós nos comunicamos, independentemente do país.

Conquanto o resultado aqui, esses casos certamente não serão os últimos. Mas o que faz esse momento tão singular é que, pela primeira vez em muito tempo, a Suprema Corte dos EUA está envolvida diretamente na questão, e seu único trabalho será dar uma resposta definitiva sobre algo que muitos se perguntam há anos: a liberdade de expressão de 2024 ainda significa a mesma coisa que ela significava em 1791, na Primeira Emenda da Constituição americana, ou estamos próximos do dia em que o quadrinho mais famoso de Randall Munroe ficará obsoleto, pelo menos no mundo das redes sociais?

Notas de rodapé

  • 1
    Além da remoção do app Parler da App Store e da Play Store.
  • 2
    A título de informação, negacionismo do holocausto (crime previsto em lei em 19 países) e desinformação sobre vacinas se tornaram protegidos por lei.
  • 3
    Computer & Communications Industry Association, ou, Associação da Indústria de Computadores e Comunicação.
  • 4
    Aqui vai o link para a chamada Bill of Rights, que contém a Primeira Emenda à Constituição do país, definindo o significado de liberdade de expressão por lá.
  • 5
    Aqui vai o link para a Constituição brasileira. A liberdade de expressão é abordada no artigo 5º.
  • 6
    Esse é um conceito que pode ser desafiador para algumas pessoas absorverem. Mas o fato de a Suprema Corte americana não ter uma resposta definitiva para isso é uma boa dica de que, talvez, o problema seja mais complexo do que alguns possam imaginar que ele seja.
  • 7
    Situação para qual o verdadeiro conceito de liberdade de expressão foi criado, para começo de conversa.

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