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O fim da App Store como a conhecemos

Na última segunda-feira (11/12), um grupo de nove jurados decidiu, de forma unânime [PDF], que múltiplas acusações de práticas anticompetitivas feitas pela Epic Games contra o Google tinham fundamento.

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O caso, provavelmente familiar para a maioria dos leitores do MacMagazine, se resume da seguinte forma: em 2020, a Epic decidiu quebrar as regras da Play Store e da App Store ao ativar remotamente em Fortnite um método próprio de comercializar compras internas. Ela fez isso sabendo que a manobra resultaria no banimento de Fortnite e abriu processos contra as duas empresas logo em seguida.

Material da campanha “Free Fortnite”, colocando a Apple como a opressora do comercial clássico “1984”.

No processo contra a Apple, a Epic perdeu em nove das dez acusações de práticas anticompetitivas. A única vitória foi a determinação de que a Apple não poderia mais impedir desenvolvedores de direcionarem usuários para fora do app na hora de fazer uma assinatura ou compra.

A Epic tentou recorrer múltiplas vezes para reverter as outras nove derrotas, sem sucesso. De quebra, a justiça favoreceu a Apple na decisão de não permitir o retorno de Fortnite à App Store até que todos os recursos se encerrem.

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Já contra o Google, a Epic venceu as 11 acusações do processo. O Google, naturalmente, já disse que irá recorrer.

As diferenças entre os casos

Aqui vai uma informação bastante resumida e simplificada, porém importante a respeito do sistema legal estadunidense: uma emenda da constituição permite que um processo seja julgado apenas por um juiz, ou então por um painel de jurados. Cabe às partes decidirem como preferem proceder1Existem questões de jurisdição e uma certa variabilidade nas regras dependendo do tipo de julgamento. Muitas vezes, o juiz também precisa concordar com a dispensa do júri. Mas para os efeitos desse texto, o resumo do resumo é esse..

Dito isso, o processo da Epic contra a Apple foi julgado apenas pela juíza Yvonne Gonzalez Rogers. Durante todo o período da argumentação, a Epic atacou o modelo de comissão da App Store, definindo-o como “pesado e injusto”. Ela também questionou a proibição de lojas paralelas de aplicativos e toda a dinâmica mais fechada de funcionamento do iOS.

Já a Apple justificou as acusações da Epic com seus investimentos em estrutura e segurança, além do robusto ecossistema de desenvolvimento que ela oferece, desde as ferramentas, suporte e APIs2Application programming interfaces, ou interfaces de programação de aplicações., até laboratórios e conferências como a WWDC.

Os advogados da Apple souberam contornar as acusações da Epic e, mesmo depois de a desenvolvedora de jogos ter estimado que a App Store rende 80% de margem de lucro para a Apple, a juíza do caso decidiu em favor da Maçã. Ela também observou que a Epic havia concordado com os termos da App Store e, por isso, deveria segui-los mesmo que os achasse injustos. Pode soar draconiano, mas esse tipo de argumento costuma ter bastante peso por lá.

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Aprendendo com os erros argumentativos e estratégicos do passado, a Epic mudou de abordagem no processo contra o Google. Primeiro, ela optou por contar com um júri, ao invés de deixar a decisão novamente nas mãos de um(a) juiz(a).

Em segundo lugar, ela passou a maior parte do tempo mostrando como o Google oferece tratamento diferenciado para determinadas empresas, como por exemplo a Netflix310% em vez de 15% de comissão para assinaturas feitas por meio da Play Store. e o Spotify40% de comissão para assinaturas diretas, e 4% em vez de 15% de comissão para assinaturas feitas por meio da Play Store..

Além disso, ela fez um contraponto interessante do Android em relação ao esquema mais fechado do iOS: ela defendeu que o Google oferece apenas a ilusão da possibilidade de existirem loja de aplicativos paralelas à Play Store. A Epic mostrou que o Google investe bilhões de dólares (o que o Google classifica como parcerias) para desincentivar a disponibilização de aplicativos importantes fora da Play Store e detalhou uma manobra apelidada de “Project Hug”, que dissuadiu 20 desenvolvedoras de jogos (incluindo Activision, Bandai Namco, Bethesda, Blizzard, Nintendo, The Pokémon Company, Riot, Square Enix, Supercell, Tencent e Ubisoft) da ideia de lançarem suas próprias lojas de aplicativos.

No fim das contas, a estratégia deu resultado. Após os argumentos finais, o júri precisou deliberar apenas por alguns minutos para decidir que o Google age de forma anticompetitiva no mercado de distribuição de apps para dispositivos Android e também nas transações por meio do sistema da Play Store.

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Para o júri, a Epic comprovou que foi prejudicada pelas ações do Google e que as manobras da companhia aplicaram limites desproporcionais ao mercado de forma geral. De quebra, o júri decidiu que o Google associou de forma ilegal os serviços Google Play Store e Google Play Billing.

O que isso significará para a Play Store na prática, descobriremos no início do ano que vem. Essa decisão, incluindo eventuais indenizações à Epic Games, será feita pelo juiz do caso, James Donato, com base no veredicto do júri5No processo, a Epic disse que não quer ser indenizada, mas sim ver mudanças estruturais no funcionamento da Play Store. Ainda assim, pode ser que o juiz determine alguma reparação financeira a ela.. Ele também poderá determinar mudanças importantes na dinâmica da Play Store, o que certamente trará mais consequências ao Google do que qualquer indenização à Epic Games.

O que isso significa para a App Store?

Não é novidade que a Apple vem trabalhando há anos para manter (e por vezes intensificar) o controle e as restrições que ela aplica na App Store. Seu argumento em bom português, absolutamente válido, se resume a:

Nós criamos o iPhone e ele conquistou milhões de clientes. Nós criamos a App Store e ela expõe os aplicativos a esses milhões de clientes. Na App Store, nós resolvemos os principais problemas e gargalos para a distribuição de software: servidores, sistemas de cobrança, taxação internacional, reembolsos, prevenção de fraudes, etc. Nós merecemos ser recompensados por isso, afinal, não somos uma empresa de caridade. Visar o lucro não é ilegal ou nefasto. Nosso jogo, nossas regras. Não gostou? O mundo do Android está logo ali.

E sabe de uma coisa? Eu concordo.

Já o contraponto dos desenvolvedores é mais ou menos assim:

Se o iPhone deu certo, foi parcialmente graças a nós. Sem os nossos apps, ele não teria uma fração da utilidade atual. Quer lucrar? Maravilha. Nada mais justo. Mas com US$ 100 bilhões de faturamento, mais de US$20 bilhões de lucro por trimestre e com uma margem geral de 45%, vocês precisam mesmo morder uma fatia tão grande de um dinheiro que só chega até vocês por nossa causa? Vai fazer tanta falta assim reduzir um pouco essa fatia? Porque para nós, fará toda a diferença. Aliás, para alguns, é a diferença entre poder ou não seguir existindo.

E sabe de uma coisa? Eu também concordo.

Por muito tempo, essa briga aconteceu de forma velada, frequentemente nos bastidores. Coisas como o Small Business Program contribuíram para apaziguar os ânimos por um curto período, mas definitivamente não foram soluções definitivas. Por isso, nos últimos anos, a briga também passou a acontecer em tribunais, congressos e senados ao redor do mundo. Desde 2020, a Apple já foi obrigada a fazer pequenas concessões e modificações nas App Stores da Holanda, do Japão e da Coreia do Sul. Isso sem contar a iminente mudança colossal que está a caminho na Europa, com o DMA (Digital Markets Act, ou Ato de Mercados Digitais).

A derrota do Google para a Epic marca um evento importante para todo este mercado, pois é a maior derrota até o momento em um tribunal estadunidense. E agora que a Epic “mostrou o caminho das pedras”, será inevitável que novos processos sejam abertos, tanto nos Estados Unidos quanto em outros países, por empresas que provavelmente adotarão a mesma linha argumentativa tanto contra o Google quanto contra a Apple6Até mesmo a Epic terá o direito de processar a Apple novamente, caso a legislação seja modificada..

Nos próximos anos, já parecia inevitável que a Apple seria obrigada a oferecer ao menos a possibilidade de existirem lojas paralelas de aplicativos, ou talvez até mesmo permitir sideloading. Com a derrota do Google, além de isso agora parecer ainda mais provável, é possível que a determinação já inclua regras que impeçam a Apple de reduzir a visibilidade ou a utilidade dessas lojas, frente à App Store.

Mas… as pessoas realmente usam lojas paralelas?

Se instintivamente, tendemos a pensar que sim, o processo da Epic contra o Google nos indica que não. A Galaxy Store, por exemplo, representa apenas 1% dos downloads em dispositivos Android, apesar de estar presente em aproximadamente 40% dos aparelhos.

É bem verdade que o Google interfere como pode, dificultando e antagonizando o uso na medida do que é legalmente permitido. Talvez, se ele for proibido de dificultar esse processo, a adoção aumente. De qualquer forma, não estar presente na Play Store atualmente é quase equivalente a não existir.

No caso da Apple, existe uma questão importante: mesmo que um app seja instalado por meio de App Stores paralelas ou via sideloading, ele estará limitado à forma de funcionamento do iOS (ou seja, sandboxed7App autocontido, sem a possibilidade de interagir livremente e de forma profunda com o sistema ou com outros apps.), exatamente como se tivesse sido baixado da forma tradicional.

Além disso, ele estará sujeito à mesma política da App Store, com a Apple tendo a opção de bloquear apps de conteúdo adulto, por exemplo, caso ela resolva adotar no iOS o mesmo esquema de aprovação (notarization) que ela adotou no macOS.

Isso lhe permite revogar a possibilidade de abrir um app no Mac, até mesmo se ele for baixado por fora da Mac App Store e que contenha malware. Obviamente, ter malware é diferente de oferecer coisas como conteúdo adulto, mas a possibilidade técnica existe da mesma forma e todos sabemos que a Apple não teria medo de usá-la.

É claro que grande parte disso dependerá da forma como as decisões dos tribunais, ou até mesmo as novas legislações, definirem até onde a Apple e o Google poderão ir quando o assunto é a restrição do que eles podem exigir ou não dos aplicativos rodando em seus próprios aparelhos.

No caso da Apple, até agora, ela vem adotando a postura de ajustar as regras da App Store caso a caso, modificando apenas o mínimo legalmente necessário para ficar de acordo com as decisões dos tribunais em cada país onde ela perde processos ou recebe ordens regulatórias.

Mas, se antes já havia uma expectativa de que estávamos vivendo o inevitável fim da App Store como a conhecemos graças à iminente mudança na legislação europeia, fato é que a derrota do Google para a Epic pode ter acelerado ainda mais esse processo.

Notas de rodapé

  • 1
    Existem questões de jurisdição e uma certa variabilidade nas regras dependendo do tipo de julgamento. Muitas vezes, o juiz também precisa concordar com a dispensa do júri. Mas para os efeitos desse texto, o resumo do resumo é esse.
  • 2
    Application programming interfaces, ou interfaces de programação de aplicações.
  • 3
    10% em vez de 15% de comissão para assinaturas feitas por meio da Play Store.
  • 4
    0% de comissão para assinaturas diretas, e 4% em vez de 15% de comissão para assinaturas feitas por meio da Play Store.
  • 5
    No processo, a Epic disse que não quer ser indenizada, mas sim ver mudanças estruturais no funcionamento da Play Store. Ainda assim, pode ser que o juiz determine alguma reparação financeira a ela.
  • 6
    Até mesmo a Epic terá o direito de processar a Apple novamente, caso a legislação seja modificada.
  • 7
    App autocontido, sem a possibilidade de interagir livremente e de forma profunda com o sistema ou com outros apps.

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