O melhor pedaço da Maçã.

Entenda tudo o que está envolvido no grande processo do DoJ contra a Apple

O Departamento de Justiça dos EUA, por exemplo, diz que a Apple usa privacidade como “escudo elástico”
Apple e privacidade

Como repercutimos ontem, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ, na sigla em inglês) e 16 estados do país ingressaram com um processo contra a Apple acusando a empresa de constituir um monopólio no mercado de smartphones. Na longa peça — que cita até mesmo um email de Steve Jobs —, são feitas diversas alegações relativas ao comportamento da companhia, várias delas com grandes esforços argumentativos bastante questionáveis.

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Uma das acusações não é nada nova em se tratando da Maçã: o DoJ, como repercutido pelo TechCrunch, disse que a empresa usa justificativas de privacidade e segurança como um “escudo elástico” — o qual, para o departamento, pode se esticar ou contrair para “servir aos interesses financeiros e de negócios da Apple”.

Esses aspectos seriam, então, usados para justificar a conduta supostamente anticompetitiva da empresa. Foram destacados os bilhões de dólares destinados ao marketing e ao fortalecimento de marca para promover a “premissa auto-interessada de que apenas a Apple pode salvaguardar os interesses de privacidade e segurança dos consumidores”.

Além disso, a própria alegação principal do DoJ relativa a práticas monopolistas usa os dados de forma questionável. Eles dizem que a Maçã controla 60% do mercado de smartphones dos EUA, mas com base no faturamento, e não no número de unidades vendidas, o que pode ignorar o valor agregado diferente dos dispositivos de cada marca. Também se destacou a maior prevalência dos iPhones entre jovens.

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Foi apontado, ainda, que a Apple e a Samsung controlam, juntas, 90% do mercado americano (a partir da receita), embora essa junção de ambas não possa ser usada para provar um monopólio. Os advogados foram além e criaram uma nova categoria de aparelhos, chamada de “smartphones de performance”, afirmando que a Maçã controlaria 70% desse setor, acusando a empresa de tentar constituir um monopólio por meio de outras táticas, o que também seria ilegal.

Como também colocado pelo TechCrunch, o caso contra a Apple é bastante semelhante ao que o DoJ moveu contra a Microsoft no passado. Ocorre que o Windows detinha mais de 90% do mercado de sistemas operacionais e a dominância era global, enquanto a Maçã detém “apenas” cerca de 64% em participação no mercado nos EUA. Mundialmente a proporção é bastante menor, em cerca de 23%.

Apps e software

Outro dos principais argumentos do DoJ, conforme destacado pelo Six Colors, é o de que a gigante de Cupertino reduziu a concorrência ao tornar mais difícil para os desenvolvedores a criação de aplicativos que funcionem em várias plataformas ao mesmo tempo. Isso, então, reduziria a competição de modo geral ao dificultar a troca entre iPhone e Android.

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São citados exemplos como as restrições a superapps — os quais trazem várias funções, incluindo mini-apps internos e, por vezes, streaming de jogos na nuvem —, que tornam o poder de processamento dos iPhones menos relevante, permitindo a compra de modelos mais baratos. Vale notar, como colocado pelo The Verge, que a empresa disse em janeiro que mini-apps poderiam usar o seu sistema de transações, algo não reconhecido pelo DoJ.

Mesmo com a Apple anunciando que serviços de jogos em nuvem poderiam funcionar no iOS/iPadOS, o DoJ argumentou que ainda seria oneroso para os desenvolvedores monetizarem os jogos. Também é criticada a exigência de usar o sistema de transações da App Store e de inserir modificações específicas para iOS, sem a possibilidade de usar apenas uma versão para todas as plataformas.

Foi elencada, ainda, a questão de apps e smartwatches de terceiros não terem acesso a mensagens recebidas, forçando os usuários a ficarem no ecossistema da empresa, assim como a ausência de carteiras alternativas.

Outro já clássico argumento usado foi o controle excessivo que a Apple exerce sobre desenvolvedores e usuários, como nas políticas da App Store e na ausência de acesso às APIs 1Application programming interfaces, ou interfaces de programação de aplicações. que a empresa usa em seus próprios apps. A ausência de lojas alternativas também foi citada, assim como o fato de ser possível instalar apps de fora da App Store no macOS, mas não no iOS/iPadOS.

Há uma acusação até mesmo de que o Apple TV+, ao ter o seu conteúdo controlado, afetaria o fluxo da fala dos usuários. É alegado também que a Apple usaria vasta quantidade de dados pessoais e informações sensíveis para distribuir apps na App Store e para direcionar anúncios. O acordo que definiu o Google como motor de busca padrão do Safari foi, ainda, alvo de críticas por questões de privacidade.

Barreiras à entrada de concorrentes

De modo geral, o DoJ defendeu que todos os recursos criados pela Apple para tornar mais difícil a troca de um iPhone por um aparelho Android seriam fundamentalmente anticompetitivos. Esse talvez seja o maior dilema do caso, na medida em que exige sopesar a inovação da empresa e estratégias normais de atrair clientes e possíveis excessos.

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O departamento argumentou até mesmo que o sucesso da Maçã é em grande parte decorrente da atuação do próprio DoJ! Destacou-se que o ressurgimento da Apple neste século deu-se em razão do iPod, que só teria ganhado tração no mercado com o suporte ao Windows. A compatibilidade do iPod com o sistema, para o DoJ, apenas se deu graças a um decreto de consentimento com a Microsoft por comportamento anticompetitivo.

A questão principal é entender se essas práticas, além de um monopólio, representam barreiras significativas para a entrada de concorrentes no mercado, além de imporem custos aos consumidores que trocam de plataforma. É o que o DoJ defende, embora a Apple possa argumentar que se trata apenas da escolha dos usuários pelos seus produtos e que a integração não seria uma barreira para a entrada de novos concorrentes.

Nesse âmbito, vale notar que o DoJ apontou exemplos de marcas que teriam falhado no mercado de smartphones em razão das barreiras impostas pela Apple. Como repercutido pelo iMore, foi citado o caso do Amazon Fire Phone, lançado em 2014 e descontinuado um ano depois. Também foram elencadas as situações da HTC, da Microsoft e da LG, que teria saído do mercado graças à Maçã.

As barreiras, para o DoJ, seriam tão grandes que até mesmo o Google — que controla o desenvolvimento do Android — está no terceiro lugar em matéria de participação no mercado de smartphones, atrás da Samsung e da Apple.

Apple Pay, NFC e Carteira

Assim como a União Europeia, o DoJ criticou o fato de o chip NFC 2Near field communication , ou comunicação de campo próximo. dos iPhones não ser aberto para carteiras de terceiros, bem como as taxas cobradas pelo Apple Pay e o monopólio sobre chaves digitais. Essa é, como notado pelo TechCrunch, a única área na qual o Departamento citou a Europa, na medida em que a Apple se dispôs a flexibilizar essa restrição por lá.

O Departamento afirmou concordar com a acepção da UE de que a Maçã favorece injustamente a sua própria tecnologia de pagamentos digitais, o Apple Pay, exercendo controle completo sobre transações por aproximação, além de ganhar com as taxas cobradas. Mesmo não havendo limitações técnicas para permitir o uso do NFC por apps de terceiros, tal prática seria um obstáculo para inovação e fortaleceria o suposto monopólio.

São citadas também repercussões desse controle sobre a imposição de barreiras para concorrentes nessa área, assim como o acesso da Apple a dados sobre transações e possíveis planos futuros de se expandir na área de serviços financeiros e de aumentar a abrangência da Carteira (Wallet).

Ainda, o controle sobre chaves digitais desestimularia montadoras de carros a inovar e aumentaria a dependência dos usuários em relação a dispositivos e à Carteira da Apple para usarem os seus carros, já que o NFC tampouco pode ser usado para esse fim em apps de terceiros.

Além disso, segundo o DoJ, com uma carteira interoperável com outros sistemas, seria mais fácil trocar de smartphone sem perder os dados relativos ao app. A Maçã, em contrapartida, defende que o Apple Pay eliminou obstáculos no ciclo de transações, gerando mais pagamentos.

iMessage

O iMessage foi outro fator usado pelo DoJ em sua argumentação. Foi destacada a questão dos balões de mensagem azuis e verdes — isto é, mensagens trocadas pelo sistema de mensagens da Apple ou por SMS 3Short messages service, ou serviço de mensagens curtas.. Em especial entre jovens, há um efeito que estimula a aquisição de iPhones, principalmente nos EUA, onde o iMessage é mais utilizado.

Além disso, só é possível criar grupos no iMessage. Em uma família que tenha um grupo no serviço, por exemplo, há um maior estímulo para que as pessoas comprem outros iPhones na hora de trocar de celular, na medida em que o mensageiro está disponível apenas em dispositivos da Apple. Também foram citados emails de executivos da Maçã reconhecendo que abrir o suporte do mensageiro para Android prejudicaria a empresa.

Outro problema apontado foi o fato de apenas o app Mensagens, no qual o iMessage está “embutido”, ter acesso aos SMSs recebidos pelo usuário. Em outras palavras, não é possível escolher outro serviço como o padrão para receber e enviar SMS, de forma que o iMessage e os SMSs ficam no mesmo app, combinando os recursos ao enviar uma mensagem para alguém. O problema continuará ocorrendo mesmo com o suporte ao padrão RCS 4Rich communications service, ou serviço de comunicações ricas., vale notar.

Tal fusão não pode ser feita em apps de terceiros, motivo que levou o DoJ a dizer que a Apple trata apps de mensagens de terceiros como se fossem de segunda classe, tornando-os piores do que o iMessage, como apontado pelo TechCrunch. Também foi citado o bloqueio do Beeper Mini (cliente que permitia usar o iMessage sem dispositivos da Apple) como uma forma de a Maçã impedir a inovação.

Apple Watch

O Apple Watch tampouco foi poupado do processo do DoJ. Por o relógio ser compatível apenas com o iPhone, o departamento argumenta que, tendo um Watch, torna-se mais custoso adquirir um smartphone de outra marca, já que não seria mais possível continuar usando o smartwatch da Apple.

Para o DoJ, relógios inteligentes que funcionam com diferentes sistemas podem reduzir a dependência da Apple em relação ao seu próprio hardware e software. São citados emails internos da companhia nos quais se reconhece que a compatibilidade do Watch limitada aos iPhones poderia impedir donos de smartphones da Maçã de migrarem para o Android.

Apesar do foco em como o Watch contribui para aumentar as vendas de iPhones, também foram destacadas, de acordo com o TechCrunch, limitações de acesso a APIs e, consequentemente, recursos do Watch para smartwatches de terceiros. Chegou até mesmo a ser dito que o Apple Watch teria sido copiado de outro produto.

Também foi destacado que o Watch continua conectado ao iPhone mesmo ao desligar o Bluetooth, algo que não ocorre com dispositivos de terceiros, que exigem configurações adicionais para manter uma conexão estável. Além disso, não é possível usar o mesmo número de telefone no iPhone e em um relógio de outra marca sem desativar o iMessage.

Como repercutido pelo 9to5Mac, a Maçã disse ter considerado estender o suporte do Watch para Android. Segundo a companhia, foi feita uma investigação durante três anos sobre o tema, mas a conclusão foi de que o relógio não poderia ser compatível com o sistema do Google devido a limitações técnicas.

CarPlay

Foi abordada também a questão do CarPlay. Segundo as acusações, constituiria conduta anticompetitiva a prática da Apple de fazer as montadoras de carros usarem a nova versão do sistema — que ocupa mais telas dos carros — ou não poderem integrar o CarPlay aos veículos.

Como apontado pelo The Verge, o DoJ afirmou que o sistema seria mais uma forma de “prender” os usuários, além de impedir o desenvolvimento de tecnologias que são interoperáveis com o smartphone, mas que não funcionam nele. Alguns analistas avaliaram que o Departamento não compreendeu bem o funcionamento do CarPlay e fez alegações infundadas.

Vale notar que as montadoras de carros podem limitar o número de painéis nos quais o sistema da Apple irá funcionar. Além disso, será necessário desenvolver outra interface, de modo que o veículo funcione sem um iPhone.

Resposta da Apple e possíveis prospectos

Em uma coletiva de imprensa realizada hoje, a Apple novamente contestou todas as acusações, afirmando que o processo seria uma política desleal do governo americano. Para a empresa, como destacado pelo TechCrunch, a única definição que faria sentido é a de que a Maçã detém apenas cerca de 20% do mercado global de smartphones.

O caso também foi classificado como equivocado e a companhia afirmou que o DoJ estaria tentando replicar o caso antitruste levado contra a Microsoft em razão do Windows na década de 1990. Qualquer comparação, porém, foi rejeitada, na medida em que o Windows detinha 95% do mercado na época do processo e que a Apple criou um novo mercado para desenvolvedores e consumidores.

Foram, ainda, ressaltados os impactos positivos da App Store em matéria de novos apps e fluxo de comércio gerado. A companhia também criticou o lobby de empresas como a Epic Games por trás do caso do DoJ, que estão usando acusações dúbias de concorrência para diminuir os custos da plataforma da Maçã.

A Apple repetiu a sua alegação — que foi inclusive refutada pelo Departamento — de que suas regras visam proteger os consumidores, a privacidade e a segurança. O processo, assim, poderia prejudicar uma experiência que os próprios consumidores valorizam.

A conclusão da companhia foi de que o processo não irá prosperar, com base em outros casos semelhantes, como os contra a Epic e a AliveCor. Também houve algumas contestações mais específicas, como as de que superapps são permitidos e que o RCS será implementado, ainda que de forma a não diminuir o nível da privacidade e da segurança.

Como repercutido pelo 9to5Mac, um porta-voz da Maçã disse que o objetivo do processo é “transformar o iPhone em um Android”, algo que prejudicaria a concorrência. Considerando que parte dos benefícios dos aparelhos da empresa é a segurança e a privacidade, a companhia argumentou que uma vitória do DoJ significaria ter de comprometer esses aspectos, com impactos sobre as escolhas dos consumidores.

Até que seja alcançada uma conclusão ou um acordo, conforme trazido também pelo TechCrunch, ainda deveremos esperar alguns anos. Analistas do banco Morgan Stanley também acreditam que o resultado poderá ser em favor da Apple, enquanto a Bernstein não enxerga grandes impactos, apenas possíveis multas ou mudanças de menor potencial nas restrições, sem muitas repercussões nas receitas da empresa.

Notas de rodapé

  • 1
    Application programming interfaces, ou interfaces de programação de aplicações.
  • 2
    Near field communication , ou comunicação de campo próximo.
  • 3
    Short messages service, ou serviço de mensagens curtas.
  • 4
    Rich communications service, ou serviço de comunicações ricas.

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