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A linha tênue da Apple entre inovação e monopólio

"Jardim murado" da Apple

No auge do Império Romano, o Mar Mediterrâneo era chamado de mare nostrum — tamanho era o poder que eles consideravam que aquela parte do mundo pertencia a eles mesmos. Muitos e muitos séculos depois, a jornalista Joanna Stern, do The Wall Street Journal, usou em um texto o termo “jardim murado” (“walled garden”) para se referir ao ecossistema da Apple: um local com facilidades e atrativos ao ponto de ser quase um mundo em separado, mas fechado para o exterior. Como na Roma Antiga, a Maçã teria conquistado uma “internet nostra”.

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Para esquentar o debate, Dieter Bohn (ex-The Verge e hoje um Googler) escreveu uma resposta à publicação de Stern, na qual corrigiu a definição de “jardim murado”. Para ele, é mais adequado chamar a Apple de operadora — apresentando alguns motivos que fazem sentido, embora a lógica dos argumentos possa ser revista. Bohn disse que, assim como as operadoras, a Apple adota técnicas para forçar os usuários a comprarem o que é benéfico para a empresa, também lembrando da polêmica questão das comissões cobradas por compras internas e assinaturas em apps distribuídos pela App Store.

Podemos pensar algumas coisas sobre ambas as posições sustentadas e, a partir disso, refletir sobre a evolução da Apple e do próprio mercado nos últimos tempos. Para isso, é necessário entender o que é uma operadora, problemática central dessa discussão, bem como a trajetória da gigante de Cupertino até chegar ao estado em que está hoje — e compreender as controvérsias geradas por esse grande espaço que a Maçã ocupa. É inevitável tratar, com isso, de questões vistas diariamente em notícias, como as acusações de monopólio, ecossistema e o que significa a internet hoje em dia.

O que é uma operadora?

Em primeiro lugar, para entendermos se a Apple é uma operadora, devemos perguntar, afinal, o que significa exatamente isso. Essa palavra em si tem um significado bastante amplo, mas devemos nos ater ao conceito de operadora de telecomunicações. Ou seja, uma empresa que fornece serviços de telefone, internet e relacionados. Também existem outros tipos de operadoras, como de planos de saúde, embora não seja o que nos interessa aqui.

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Na acepção original da palavra, a Apple não é uma operadora. Sem a infraestrutura de internet — área em que a Maçã não participa —, a empresa basicamente não consegue funcionar. Todavia, podemos extrapolar um pouco o pensamento para refletir também em como o fato de empresas “operarem” serviços na internet se expandiu nos últimos tempos.

Antenas

A argumentação usada por Bohn para fazer essa comparação não inicia pelo princípio, mas por práticas questionáveis adotadas por operadoras e que estariam se assemelhando a algumas estratégias da Apple. Cobranças indevidas, bloqueios para cobrar taxas… esses incômodos seriam análogos ao controle que a Apple detém sobre as taxas da App Store, entre outros aspectos. As intenções de ambas as empresas seriam aumentar a renda advinda de cada usuário.

O artigo de Stern também lembra de um outro aspecto: o de que a Apple cria atrativos para o uso de seus próprios aplicativos em detrimento de concorrentes (terceiros). Por exemplo, nada impede o uso do Spotify no iPhone, mas o Apple Music tem algumas vantagens, incluindo o fato de vir instalado por padrão nos dispositivos da Maçã. O mesmo pode ser dito do aplicativo Mapas, do Notas, entre outros. Isso se refere à discussão sobre monopólio, em alta desde o processo contra a Epic Games, e sobre o que vamos nos debruçar mais adiante.

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Outra forma de pensar esse debate é pela transformação do que significa operar serviços de telecomunicações no presente, algo que o próprio Bohn trata de maneira mais breve: “Se for dada a oportunidade novamente, não duvido que as operadoras encontrem maneiras de exercer controle, alimentar o Deus Irado da renda média por usuário e, assim, sufocar a inovação. Mas a Apple tomou efetivamente esse poder delas — mantendo-o para si mesma. A questão agora é o que a Apple planeja fazer com esse poder”, diz um trecho do artigo.

Esse é o centro da problemática. Antes, nossa comunicação era baseada em ligações telefônicas, SMS1Short message service, ou serviço de mensagens curtas., telegramas e cartas num momento mais distante. Desde meados de 1990, mas especialmente com o século XXI, a internet tomou esse lugar. É verdade que são as operadoras que detêm a infraestrutura do serviço, mas nenhuma delas tem serviços online de grande vulto. São empresas como o Google, a Microsoft, a Meta e, claro, a Apple que sustentam todas as facilidades que usamos diariamente.

Dessa forma, como proposto por Bohn, o poder de “operar” foi tomado das operadoras pelas Big Techs. Estas, assim, seriam as verdadeiras operadoras atualmente. No sentido estrito, essa lógica ainda apresenta problemas, já que, se fôssemos pensar do ponto de vista estratégico, se as empresas que provêm a infraestrutura resolvessem simplesmente desligar o serviço, nada mais funcionaria. Ainda assim, mesmo não tendo o que poderíamos chamar de hard power, se as empresas fossem países, é tamanha a importância de soluções na internet que é impensável uma vida atualmente sem elas. Basta imaginar o que seria um dia sem o WhatsApp, por exemplo.

Tendo o poder de operadora e estabelecendo seu “jardim murado”, ou olhando para a internet como mare nostrum, a Apple passa a também adotar práticas mais amplas do que quando apenas fabricava computadores, na década de 1980. Claro que a simples ampliação de atividade não é exclusiva da Maçã, mas ela detém uma integração ainda sem pares entre hardware e software — já consolidada nos iPhones, agora também nos Macs, com o Apple Silicon, abandonando processadores de terceiros.

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Nesse sentido, a discussão chega à questão do monopólio, que está judicializada e sem uma resposta final. A Apple atua em áreas bastante diversas e só vem aumentando os campos em que tem serviços — desde os iPhones, os Macs, agora investindo em plataformas de conteúdo por demanda, serviços de pagamentos, ao mesmo tempo em que tem a loja de aplicativos mais lucrativa existente, alvo de muitas polêmicas. Até que ponto enxergamos isso apenas como inovação e quando passa do limite, se é que existe um?

Monopólio: linha tênue com a inovação

No Brasil, é bastante popular a opinião de que o mercado de operadoras de telecomunicações é marcado por problemas de concorrência, qualidade do serviço, do atendimento, entre outros. Quando vamos para serviços digitais, a situação muda de instrumentalização, a depender da área específica. A maioria dos sites e aplicativos mais usados, por exemplo, são de empresas estrangeiras, de modo que estão sujeitas a regulações de diversos países e regiões.

Isso, aliás, é algo interessante de se observar nessas “novas operadoras”. Por operarem ao mesmo tempo em dezenas de países, elas precisam se adaptar a muitos ordenamentos jurídicos diferentes. Ainda assim, os órgãos de alguns países exercem mais influência do que outros: além dos países de origem das empresas — majoritariamente os Estados Unidos —, a União Europeia também apresenta grande poder de moldar políticas de regulação.

Quando o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados entrou em vigor, em 2018, apps de diversos países — até mesmo do Brasil — começaram a adaptar suas atividades em conformidade com o que determinava a legislação da UE. Outros países poderosos, como a China, que tem um governo autoritário, preferiram se fechar a soluções estrangeiras e usar apenas aquelas provenientes de empresas nacionais. De todo modo, isso faz com que tanto a constituição de práticas anticompetitivas como o seu combate tornem-se mais complexos, já que são muitos os campos/locais de atuação.

O principal tópico da discussão sobre concorrência desleal envolvendo a Apple é a App Store. Esse debate ganhou força em 2020, quando a Epic Games iniciou a homérica disputa com a Maçã ao incluir uma opção que permitia fazer compras no jogo Fortnite sem usar o sistema de pagamentos da Apple. Depois disso, o jogo foi retirado da loja de aplicativos, a Epic foi banida da App Store e a briga foi levada aos tribunais, onde até hoje está.

A questão principal levantada pela Epic e demais partidárias da empresa é de que a Apple não poderia forçar as desenvolvedoras que querem vender conteúdos em aplicativos a usar o sistema de pagamentos próprio da App Store. Assim, ao cobrar uma comissão e proibir o uso de meios alternativos de transações dentro dos apps e de instalação de aplicativos, estaria sendo cometida uma prática abusiva com o objetivo único, ou ao menos principal, de aumentar os lucros.

Chegamos, desse modo, a um ponto importante: o que significa monopólio? Para o dicionário Michaelis, é o “controle exclusivo de toda ou de quase toda a atividade comercial, industrial ou de exploração de um produto ou serviço, em que uma pessoa ou companhia afasta ou torna praticamente impossível a possibilidade de concorrência por outras companhias.”

A legislação brasileira acompanha essa definição, como podemos ver pela Lei nº 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. O artigo 36 do dispositivo trata das ilegalidades que podem ser cometidas e o que chegaria mais próximo seriam o inciso II, o qual fala de “dominar mercado relevante de bens ou serviços”, e o inciso IV, que diz “exercer de forma abusiva posição dominante”. Há uma exceção neste último, porém, a qual fixa que “a conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II”.

Ou seja, a lei não deixa claro se podemos considerar o fato de uma empresa dominar um mercado um monopólio, caso ela não impeça diretamente outras de se desenvolverem. Outro inciso do art. 36 que vai ao encontro do que a Epic alega é o I, cujo texto é “limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa”. Essa ação é extremamente ampla e poderia ser usada pela própria Apple: ora, se a empresa desenvolveu a App Store, ela não estaria sendo limitada ao não poder cobrar uma comissão por isso e/ou ser obrigada a permitir a instalação por outras fontes?

A legislação dos EUA sobre o tema é ainda mais vaga. Como a tradição jurídica do país é o common law, ou direito consuetudinário — isto é, formado mais pela jurisprudência do que pela lei escrita —, a legislação já é costumeiramente bastante menos detalhada do que a brasileira, por exemplo. A lei que é mais utilizada para basear processos por lá, inclusive pela Epic, é o Sherman Act, que, em linhas gerais, versa sobre uma multa contra aqueles que praticarem monopólio.

A definição do que é exatamente monopólio fica para a jurisprudência, ou seja, os casos que foram sendo decididos com o tempo. Dessa forma, é complicado cravar de maneira categórica se a empresa estaria ou não cometendo o ato. A Epic alegou, por exemplo, que a comissão cobrada é abusiva (termo vago) e que, ao impedir que apps sejam instalados de outras fontes que não a App Store, a concorrência estaria sendo desleal.

Em uma entrevista, o CEO2Chief executive officer, ou diretor executivo. da desenvolvedora de jogos, Tim Sweeney, sugeriu que a Apple teria direito a lucrar a partir do hardware que produz, mas que estaria usando o software para forçar ganhos de modo injusto. Uma pergunta que deve ser feita é: se não existisse App Store, o serviço de download de apps e assinaturas seria igual? Se a Apple faz o iOS — e o Google, o Android —, não teria direito a ter uma fatia do dinheiro que é gerado? Qual é o limite desse valor?

Obviamente, a resposta da Maçã é no sentido de que App Store é singular e está, sim, certa em receber sua comissão. Em resposta à juíza Yvonne Gonzalez Rogers, que julga o caso entre a Maçã e a Epic, Tim Cook afirmou que permitir o sideloading (ou seja, a capacidade de instalar apps de fora da App Store) significaria abrir mão da propriedade intelectual construída pela empresa.

Assim como o conceito de operar serviços de telecomunicações pode ter mudado com o tempo, da mesma maneira deveria tê-lo feito a legislação, mas não foi exatamente isso que aconteceu. Sendo um assunto que se refere a algo tão utilizado pela maioria das pessoas, o problema passa a estar focado no laconismo de legislação específica sobre o assunto.

Não impedindo diretamente as concorrentes de prosperarem, outra questão a ser discutida visa entender se é um problema uma empresa atuar em áreas tão diferentes. A Apple, por exemplo, lucrou apenas com jogos em 2021 mais do que a Nintendo e Activison Blizzard, companhias desse ramo. A gigante de Cupertino também está dando mais passos para atuar de maneira independente no mercado financeiro, com o Apple Pay Later e o Apple Financing. Como lidar com uma só empresa que processa tantos dados diferentes dos clientes? Mais um problema do século XXI.

Leis do passado, problemas do futuro

Ante tantas questões nebulosas, temos algo que podemos afirmar com mais certeza (embora vá gerar apenas mais dúvidas): a discussão sobre o conceito de operadora é, num sentido mais prático, relacionada a se há um problema ou não na maneira por meio da qual a Apple trabalha pertence totalmente ao presente. Nunca, em nenhum outro tempo, estaríamos discutindo sobre se é justo uma empresa cobrar uma comissão por prover um suporte que só tem basicamente outra concorrente de mesmo peso.

É verdade que a ideia de cobrar uma parte da receita de alguém por estar viabilizando o seu trabalho está longe de ser uma noção nova. A questão aqui são as particularidades da situação, conforme alega a própria Epic, por exemplo: não há como mudar de empresa se as condições da Maçã não agradam, como fazemos quando um apartamento alugado não está mais suprindo as necessidades.

A solução, então, é buscar o poder judiciário. Ele, porém, está limitado às leis, ou, no máximo, à interpretação dos juízes. Ambas estão bastante desatualizadas na discussão antitruste com foco digital, em especial no Brasil. A União Europeia e alguns de seus Estados-membros estão começando a formular regulamentações nesse sentido; nos EUA, essa formulação coincide com os próprios julgamentos, em razão da tradição consuetudinária.

Todavia, uma ideia interessante é levar a discussão ao âmbito internacional, já que, sendo algo relacionado ao ciberespaço — e não a um território em específico —, é natural que se refira a uma perspectiva transnacional, ao mexer com pessoas de basicamente todas as regiões com conexão à internet. Apesar de também não ser nada simples e ter outras complicações, como ser mais difícil de alcançar um consenso, seria produtivo ao menos levar a discussão aos fóruns multilaterais — talvez até à Organização Mundial do Comércio — para produzir novos entendimentos.

O que ocorre atualmente é julgar um caso gerado a partir de uma situação extremamente atual com leis que não são muito adequadas para tal. A proteção de dados, para exemplificar, até se enquadra no guarda-chuva de “direito à privacidade”, mas não de maneira suficiente. Foi necessário legislar de modo específico para não deixar nada de fora, o que teve como resultado, no Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados.

Discutir significa expor todas as perspectivas, tentar chegar a um consenso e, por fim, fixar uma norma para pelo menos guiar a resolução de conflitos que podem acontecer. John Gruber, do Daring Fireball, por exemplo, trouxe a ideia interessante de que não há nada errado em ser um “jardim murado”, com atrativos próprios. A Apple certamente concorda com essa noção, mas é preciso definir se há um limite para isso, de modo a não prejudicar a livre concorrência.

Até que ponto é certo uma empresa estimular a assinatura de seus serviços e desestimular a de terceiros? Há um nível mínimo de compatibilidade com soluções de outras empresas que deve ser mantido? As comissões de lojas de aplicativos têm um limite? Por que elas existem? É justo que a Apple e o Google cobrem esse valor? Permitir a instalação de outras fontes seria aceitável? Toda regra surge de perguntas como essas — as quais estão sendo intensamente feitas e precisam de respostas, que são as leis. Não são exatas, mas devem ser melhores que as dúvidas.


Vemos que esse tema traz vários episódios que aconteceram recentemente e, além disso, que há mais perguntas do que afirmações categóricas. Muitas das coisas que ocorrem são, por exemplo, inícios de investigações, relatórios e pedidos, o que, em si, não representam exatamente fatos, mas possibilidades para o futuro.

É importante, assim, eleger legisladores que tenham domínio sobre essas problemáticas relacionadas ao monopólio na internet, já que só assim as leis poderão ser aprimoradas e a situação, modificada. Se quem faz as leis — as quais não estão atualizadas conforme as questões atuais — também está desatualizado, nada acontecerá e ficaremos presos nesse ciclo.

As movimentações, porém, demonstram que deve haver alguma regulamentação em alguns locais, como nos EUA e na UE, nos próximos anos. Todas as investigações que estão ocorrendo agora geram relatórios, os quais servem de base para a atividade de fiscalização dos legisladores. Deve-se, assim, detectar a necessidade de codificar (transformar em código) as arestas soltas.

Por ora, só nos resta observar atentamente ao que está ocorrendo. Se a Apple é uma operadora por… operar o seu mare nostrum, ou “jardim murado”, assim deve ser tratada. Ou, qualquer que seja o entendimento, as normas não deveriam ser tão colaterais quando falamos de algo tão importante quanto a internet, a qual já há pensadores que classificam como direito transnacional.

E você, está confortável navegando nesse “infomar” (para usar uma música de Gilberto Gil), da Apple? 😜

Notas de rodapé

  • 1
    Short message service, ou serviço de mensagens curtas.
  • 2
    Chief executive officer, ou diretor executivo.

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