Na semana passada, trouxemos aqui críticas direcionadas à Siri realizadas por um dos seus criadores, que foi separado dela no momento da aquisição da assistente por parte da Apple. Agora, o The Information trouxe uma aprofundada reportagem1Matéria fechada para assinantes. com entrevistas de ex-empregados da Maçã envolvidos no desenvolvimento da ferramenta dentro de Cupertino — e o cenário pintado pelos profissionais não é nada bonito.
Os ex-empregados — que, por razões óbvias, permaneceram sob anonimato — foram quase unânimes em afirmar que o lançamento da Siri, no iPhone 4s, foi precipitado: a tecnologia não estava pronta para a estreia, o código era uma bagunça e as equipes da Apple nem ao menos tinham um consenso sobre qual deveria ser o papel da assistente digital no seu ecossistema.
Após o lançamento, um debate interno se iniciou sobre a natureza da ferramenta: deveria a Apple continuar desenvolvendo (e consertando ao longo do caminho) um produto com falhas em sua própria fundação ou era melhor acabar com aquilo e recomeçar o projeto do zero?
A visão de Steve Jobs, que acompanhou de perto o desenvolvimento da Siri antes do seu lançamento, era tipicamente Jobsiana: fazer um produto fechado, sem integrações (inicialmente, ao menos) e excelente em um pequeno número de tarefas. Esta opinião era compartilhada por Scott Forstall, então chefe de desenvolvimento do iOS, mas tinha dissidentes dentro da própria empresa, que afirmavam que o potencial da Siri era de ser algo bem maior e mais poderoso, possivelmente com a aptidão de ser integrado a serviços de terceiros logo no seu lançamento.
Jobs morreu um dia após o lançamento do iPhone 4s e da Siri e, segundo os ex-empregados entrevistados, o trágico evento foi o catalisador do rumo errante da assistente. “Eles perderam a visão”, disse um dos profissionais. “Não conseguiam ver a coisa toda.”
Foi aí que Forstall, ocupado com outras partes do iOS e o desenvolvimento dos (inicialmente malfadados) Mapas da Apple, colocou Richard Williamson como chefe de desenvolvimento da Siri. O engenheiro adotou uma estratégia que fez muitos empregados torcerem o nariz: atualizar a assistente, dando a ela novas capacidades, somente uma vez por ano, assim como a empresa faz com seus sistemas operacionais. De acordo com a equipe da Siri, a ferramenta tinha que ganhar novas ferramentas continuamente, como num serviço online que está sempre em evolução — isso criou mais uma cisão nas equipes.
Para piorar, a popularidade da Siri após o seu lançamento “superou as expectativas”, o que, por mais que pareça uma boa notícia, só expôs a falta de estrutura que a Apple dedicou à assistente. O código dela era tão bagunçado que exigia um quantidade enorme de servidores, e os engenheiros da Maçã tiveram que virar dias e noites para manter o serviço funcionando com a alta demanda. A situação, segundo os entrevistados, era tão estranha que um engenheiro se viu obrigado a mexer no código da Siri para alterar o funcionamento de um componente da ferramenta que exigia 500(!) servidores somente para ele; após a reconstrução da tarefa, esse número caiu para somente 5.
Após esse primeiro ano caótico (em que, segundo os entrevistados, a Siri não evoluiu uma palha sequer), as coisas mudaram: Adam Cheyer, um dos criadores da Siri que foi contratado pela Apple após a aquisição da ferramenta, deixou a empresa no início de 2012 ao perceber que sua visão da assistente nunca seria realizada. Mais para o fim do ano, Forstall e Williamson também arrumaram suas coisas e deixaram a Apple — a razão principal, especula-se, foi o desastre do lançamento do Apple Maps, mas a Siri também pode ter sido um fator preponderante para as demissões.
Em 2013, a Apple comprou a Topsy, empresa dedicada à análise de tweets cuja tecnologia foi adaptada para aprimorar recursos como o Spotlight e, claro, a própria Siri. A equipe recém-chegada assustou-se com a infraestrutura da assistente digital, que, segundo eles, “tinha sido remendada aqui e ali mas nunca completamente substituída” desde o lançamento.
Então, no ano seguinte, veio a reviravolta: a equipe da Siri viu a Amazon lançar o alto-falante Echo com a assistente digital Alexa e só então descobriu que, em um outro canto de Cupertino, uma equipe totalmente diferente da Apple estava desenvolvendo um produto que viria a ser o HomePod. Sim: até um ponto deveras avançado da gênese da caixinha de som, a equipe da Siri não fazia ideia da sua existência. Cogitou-se, inclusive, que o HomePod fosse lançado sem suporte à assistente, tamanha era a vontade das demais equipes da Apple em evitar a bagunça ali instalada, afirmaram algumas fontes.
Agora, segundo a reportagem, o desafio é fazer com que o SiriKit (a API de integração da assistente com serviços de terceiros) decole, coisa que ainda não aconteceu. A tarefa é formidável porque, segundo os ex-empregados, a Apple continua sendo uma empresa primariamente de design e hardware, e não de serviços, como gosta de se colocar às vezes. Isso pode causar problemas — como todos esses que vimos nos parágrafos acima. Agora teremos que aguardar para ver o que o futuro reserva à Siri.
via MacRumors
Atualização 14/03/2018 às 23:55
A reportagem já está causando polêmica entre empregados e ex-empregados da Apple. O engenheiro Dag Kittlaus, um dos criadores da Siri que foi para a Apple na ocasião da sua compra, negou totalmente uma declaração dada por Richard Williamson na matéria.
A declaração de Williamson foi a seguinte:
Depois do lançamento, a Siri foi um desastre. Ela era lenta — isso quando sequer funcionava. O software estava tomado por bugs sérios. Esses problemas eram de total responsabilidade da equipe original da Siri, certamente não meus.
Vendo essa tentativa de Williamson de, em bom português, tirar o dele da reta, Kittlaus foi ao Twitter e não poupou palavras numa resposta a Jessica Lessin, editora-chefe do The Information:
This statement, wholly false, was made by the architect and head of the biggest launch disaster in Apple history, Apple Maps. In reality Siri worked great at launch but, like any new platform under unexpectedly massive load, required scaling adjustments and 24 hour workdays.
— Dag Kittlaus (@Dagk) 14 de março de 2018
Essa declaração, totalmente falsa, foi feita pelo arquiteto e mente por trás do lançamento mais desastroso da história da Apple, o Apple Maps. Na realidade a Siri funcionava muito bem no lançamento, mas, como qualquer nova plataforma sob uma demanda inesperadamente alta, exigiu ajustes de escala e dias inteiros de trabalho.
Depois, em resposta a um tweet de John Gruber, do blog Daring Fireball, Kittlaus explicou seu ponto:
John, I took no pleasure in making that quote, not my style, but that was so blatantly wrong I couldn’t stand by and let it go. @StevenLevy said it best in his reply.
— Dag Kittlaus (@Dagk) 14 de março de 2018
John, eu não tive nenhum prazer em dar aquela declaração, não é o meu estilo, mas aquilo era tão descaradamente errado que eu não pude ignorar e deixar passar. O @StevenLevy disse tudo em sua resposta.
A resposta de Steven Levy (jornalista americano especializado em tecnologia) referida por Kittlaus foi esta aqui:
That quote is kind of amazing. Even if true (and I believe Dag) brazenly pushing blame to someone else for a product you were responsible for is a very bad look.
— Steven Levy (@StevenLevy) 14 de março de 2018
Essa citação é meio que impressionante. Mesmo que seja verdade (e eu acredito em Dag), colocar descaradamente a culpa da falha de um produto que você era responsável em outra pessoa é uma coisa muito feia.
Aparentemente, soltaram os cachorros entre a turma original da Siri. Vamos ver os próximos capítulos dessa história…
Notas de rodapé
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