Ninguém tem a obrigação de apressar nada, quando não está devendo. No caso da Apple, que dedicou uma apresentação inteira no seu suntuoso auditório para falar de serviços, cabe uma reflexão de como a empresa está encarando este tema — e outros, pois fatalmente há mais negócios precisando de atenção na nossa lista.
Graças às estripulias que Mark Zuckerberg e companhia (para evitar polêmicas, citarei apenas estes pelo nome…) andaram fazendo nos últimos anos, trabalhar com serviços tornou-se um tema complexo.
Eles ainda são uma forma muito efetiva para as empresas de internet movimentarem finanças sustentáveis a longo prazo, entregar conveniência com iteração rápida, alcançar maior audiência com planos acessíveis (gratuitos, muitas vezes) e são um terreno fértil para evolução de tecnologias emergentes, sendo inteligência artificial a grande bola da vez. Mas os serviços com os quais nos habituamos a lidar diariamente são marcados pelos seus detalhes obscuros; no que cito indiretamente acima, privacidade e segurança são dois exemplos de aspectos fundamentais que passaram batidos em um caminhão de escândalos, por exemplo.
O que nos leva à proverbial pergunta do inglês: “What’s the catch?” Ou, no caso da Apple, aonde esses filhos da mãe querem ir com Apple News+, Apple Arcade, Apple Card e as novidades no ramo de TV, com o Apple TV+?
De imediato, poderíamos concluir que não é para lugar nenhum. O Apple News+ de agora é em parte um relançamento da Texture (em fase de fechamento) dentro de um app que o iOS possui há quatro anos. Os outros não tem sequer data exata de lançamento. E a Apple não vai entrar em gracinhas com o seu histórico de uso nos aparelhos que ela vende; em vez disso, aposta em privacidade e segurança como dois dos seus atrativos principais.
Apesar disso, ao limpar o forno para fazer uma apresentação fora do roteiro igual a do mês passado, focada em soluções que foram mais expostas como ideias do que concretas, a Apple mostrou pressa em querer firmar seu portfólio no mercado. E a questão mais importante aqui é se ela acerta em fazer isso agora.
Apple Pay, Apple Music e Apple TV — além do Apple Arcade — estão bons
E estão mesmo — ao menos, para este que vos escreve. Sou usuário dos três primeiros e gosto da experiência que tenho. O Apple Arcade pode não estar pronto, mas como a empresa vai lançá-lo em mais de 100 países neste ano, grandes são as chances que poderei avaliá-lo e emendar este artigo com um veredito final — de todo modo, a proposta dele também é boa.
Para justificar meu ponto de vista sobre eles, convém lembrar da abordagem em sete pontos usada por Tim Cook para explicar como os serviços da empresa devem funcionar.
No tocante aos exemplos do título, não há nada grave sendo ignorado em nenhum deles. O Apple Pay é conceitualmente excelente para usuários (considerando que o seu banco o aceita, claro) e o Apple Music mostra sinais constantes de avanços onde precisa evoluir, além de ter deixado para trás aspectos que não eram bons quando foi lançado, em 2014. Ambos serão carros-chefe da empresa em serviços por um bom tempo — o segundo, aliás, já tem números que comprovam essa tese.
Vamos falar mais da Apple TV, pois foi quem recebeu atenção no último evento. A Apple enfrenta concorrência no seu segmento desde o seu primeiro lançamento, pois tanto ela quanto todas as suas rivais vêm de um histórico de tentativas frustradas em tentar fazer uma boa oferta de entretenimento por meio da internet. Então, não há como cravar que sua caixinha será um dia significativamente superior a outras ofertas do mercado — há zilhões de marcas de TVs e acessórios para elas, como o popular Google Chromecast, por exemplo.
O preço do equipamento, comparado com as ofertas destes fabricantes, é um fator limitante que a Maçã atenua ao distribuir seu app de conteúdo em parceiros de hardware. Além disso, investir em conteúdo original, ainda mais com estrelas de alto calibre no plantel, pede o máximo possível de distribuição; infelizmente, apenas com Apple TVs não seria o bastante para a audiência esperada para as novas séries.
de Apple
Preço à vista: a partir de R$ 1.169,10
Preço parcelado: em até 12x de R$ 108,25
Lançamento: setembro de 2017 (5ª geração)
Foram decisões com consequências, como era de se esperar: o estremecimento das relações com a Netflix já foi notado. Mas a longo prazo, os canais e as séries originais da Apple podem dar bons resultados. São bons incrementos para a oferta de entretenimento da empresa, agora com potencial de crescer e se tornar mais consistente ao redor do mundo.
Quanto à Apple TV em si (a caixinha), há bons indícios de que sua plataforma terá uma remontada na oferta de jogos: além de o Apple Arcade estar prometido para a caixinha da Apple, o Google promete levar sua recém-lançada oferta de jogos por streaming (o Stadia) para qualquer lugar que sirva o YouTube — embora não aposte minhas fichas na Apple TV como um dos prioritários, mas podemos esperar.
iCloud, Apple Mapas, Apple News e Siri estão ruins
Quão ruins? Bom, depende de a quem você pergunta.
Mesmo que sua sincronização de arquivos no iCloud Drive esteja perfeita e o Apple Mapas não mande você para um atol no meio do Atlântico ao buscar um endereço no bairro ao lado, há problemas fundamentais nesses caras que a Apple preferiu não priorizar neste momento. Eu não sei quanto a você, mas eu vejo o problema da Apple com serviços num patamar que antecede (e muito) eventos recentes. E é aí onde a coisa não mostra uma imagem boa.
Sobre o iCloud, incomoda o fato de ele não frequentar dois bondes que são fundamentais para a popularidade dos aplicativos que tem: escolas e empresas. No ano passado, a Maçã até melhorou suas ofertas para o setor de ensino, oferecendo iPads mais baratos e criando currículo de referência para educadores; no ramo corporativo, há parcerias gigantes como SAP, Salesforce, IBM, Accenture e por aí vai.
Por outro lado, você vê alguém em um escritório ou sala de aula trabalhando em documentos no iWork? Não é como se fosse impossível: se você ou seus colegas usam Windows, é possível acessar arquivos feitos no Pages, no Numbers ou no Keynote no navegador web da sua escolha. Entretanto, a Apple não ataca diretamente os fortemente consolidados Microsoft Office (que chegou recentemente à Mac Ap Store) e G Suite, que oferecem planos de colaboração e armazenamento em nuvem com melhores opções e fluxos de trabalho baseados em arquivos e pastas — que são o que esses mercados realmente precisam.
Embora não seja um cenário impactante para a Apple ser bem-sucedida com seus produtos, é ruim para ela que tenha fatores diferenciais para escolha em empresas e escolas. Já passou da hora de o iCloud dar o salto que falta nessa direção. Por que novas soluções, como Sala de Aula e Apple Teacher, ficam melhores separadas do que agregadas a uma única família de apps em nuvem, permitindo à Apple explorá-las consistentemente em diversos públicos?
Falando em consistência, Mapas, News e Siri são levados a nocaute pela falta dela. Basta olhar para essa página no site da empresa. Por mais que os três possuam seus pontos fortes, incomoda o fato de todos serem pensados com cuidado e esmero para os Estados Unidos primeiro e depois (mas muito depois) para o resto do mundo — com cortes e deixando muito a desejar.
E o pior: empresas que começam depois da Apple, grandes ou pequenas, costumam ir muito à frente dela com alguns concorrentes em menos tempo. Um veículo jornalístico em português, por exemplo, já poderia se mexer para suportar um serviço razoável de notícias da Maçã, a essa altura. Ainda que ele não tivesse grandes jornais e revistas 100% feitas para ele — afinal, nos EUA, foram aceitos PDFs de muitas delas.
Podemos até ter uma pausa serena para deixar de lado as chatas inconsistências. Vamos dizer que eu possa sobreviver sem assinar revistas do Apple News+, ou sem navegar virtualmente pelos shoppings de São Paulo no Mapas (spoiler: eu posso). Atualmente, é da natureza de serviços online terem um denominador comum de funções que sejam minimamente boas para uma grande audiência, coisa que Tim Cook e companhia não têm feito. Coisas mínimas, como ter a certeza de poder falar com a Siri em público sem o receio de que ela falhará em perguntas simples, ou poder ver uma informação de um local no Apple Mapas ser corrigida com a sua ajuda, coisa que ele ainda não está bem.
Mesmo nessas questões, a empresa acerta pouco, muito pouco, para quem quer apresentar excelência em serviços. Eventos como o da semana retrasada, no qual apenas um dos novos estava realmente pronto para o dia, não teriam de mostrar soluções para todos os problemas de uma vez; mas mesmo sem querer, comprometem essa mensagem, ao adicionar mais distrações para um portfólio que carece de consistência.
Onde a Apple está devendo
Por definição própria, a Apple é uma empresa de plataformas — todas elas já consolidadas nos segmentos onde atuam. Não é ruim que ela aposte mais em novos serviços e queira apresentá-los de forma diferente: afinal, eles formam um pilar fundamental no que faz seus produtos continuarem a ser comprados. O momento, no entanto, é de atenção a outros dois pilares: hardware e software, que o próprio Cook destacou ao público no final do mês passado.
A verdade é que a Apple vem de erros, alguns deles crassos, no trato com seu hardware e software, que costumavam ser referência em qualidade. Rapidamente posso citar o fiasco envolvendo o anúncio e a morte do carregador AirPower, a insistência com um formato de teclado para MacBooks que continua fadado a falhar depois de três gerações em uso, e a exposição ao mercado de novos produtos como o iPad Pro e HomePod, com recursos de software que foram postergados para o iOS 13 ou que ainda não atendem às expectativas, mesmo tendo hardware de ponta.
Eventualmente, esses tropeços serão superados — ainda que não tenham preenchimento com nenhuma solução equivalente, como certamente é o caso do AirPower. Mas com tanto a se dar atenção, várias áreas e serviços já existentes com oportunidades de melhoria, é de se questionar que a Apple tenha escolhido abrir o ano para o público com várias novas promessas e poucos compromissos concretos e definidos. A motivação disso claramente veio de conversas recentes com investidores, repercussões de revisões sobre crescimento em vendas e uma desaceleração das vendas de hardware.
Como outros dizem por aí, acredito que o mercado financeiro é movido a medo e ganância. Não são os melhores valores para balizar as escolhas a se fazer numa empresa — ainda mais quando ela atende a uma comunidade de pessoas que foi movida a se importar com a qualidade e o esmero sobre o que é produzido, estes sim merecedores de compromisso, em primeiro lugar.
Voltando à frase que iniciou este texto: apesar dos pesares, a Apple não deveria apressar nada por Wall Street — crescendo ou não, com crise ou não. Eles podem até se contentar em ter anúncios apressados ou com apresentações de planos de negócio. Mas medo e ganância podem mudar tudo a qualquer dia e a qualquer hora.
Enquanto isso, tem um pessoal aí merecendo produtos com uma melhor experiência para… digitar palavras. Para alguém que fabrica computadores, não seria algo a pensar com um certo senso de urgência?