Marcos A. de Lima Filho
Industrial Design PhD student @ Northumbria University
Antes elogiada pelo seu enorme potencial como economia emergente, a China pode representar para a Apple uma ameaça e não uma oportunidade.
Historicamente, a China não tem sido o mercado mais amigável a marcas estrangeiras. Google, Twitter e Facebook encontraram dificuldades em fazer negócios lá devido, entre outras coisas, a políticas de censura. No entanto, isso não impediu o povo chinês de descobrir as maravilhas das redes sociais: é só ver os sucessos do Sina Weibo, do WeChat, do Baidu e afins.
Essas restrições também funcionam a favor de muitas startups chinesas especializadas em copiar empresas ocidentais de sucesso. Assim, as políticas restritivas do Partido Comunista Chinês (PCC) sobre o uso civil da internet também acabam impedindo a concorrência estrangeira de obter uma fatia do mercado chinês. Forma-se uma situação ganha-ganha (para o PCC, é claro).
A receita da Apple na China está estagnada desde 2014. O que mudou desde então? Se a ascensão de Huawei, Xiaomi, Vivo, Oppo, Honor, OnePlus, Meizu e outros players chineses lhe chamam a atenção, significa que você entende as disrupções em vigor neste mercado. E eu me preocupo se a Apple está à beira de ser completamente arruinada na China.
Segundo a Counterpoint Research, a participação de mercado da Apple na região caiu de 13% no primeiro trimestre de 2018 para 9% no mesmo período de 2019. É verdade que a Apple pode sobreviver com uma fatia de mercado modesta porque seus preços mais altos sustentam generosas margens de lucro. No entanto, é preciso estar atento para movimentos nos próximos trimestres, pois as disrupções no mercado de smartphones tendem a ser incrivelmente rápidas — Nokia, BlackBerry e Windows Phone desapareceram muito, muito rapidamente.
Isso sem mencionar a atual guerra comercial entre a administração Trump e a China. No entanto, parece que a ascensão das marcas chinesas tem sido uma tendência desde muito antes da eleição de Trump. A retórica do presidente dos Estados Unidos apenas dá um toque de política a essa questão, mas não é de modo algum o agente causador. O imbróglio dá uma motivação adicional para a administração chinesa libertar seu povo dos males imperialistas embutidos em cada iPhone made in China (ironia, aqui). Mas certamente a tendência de crescimento dos fabricantes nacionais vigora desde antes de Trump.
A única vantagem nessa situação é que a Apple parece estar ciente desses problemas. No ano passado, a empresa tomou a decisão surpreendente de cortar os preços de seus modelos mais recentes vendidos nos varejistas chineses. Novas aberturas de Apple Stores recuaram desde 2016, passando de 17 novas lojas naquele ano para… zero em 2019.
Esse recuo é uma consequência direta do crescente número de consumidores que passaram a preferir marcas locais:
“[Há uma década], a Apple oferecia um produto que era muito melhor e tão diferente que fazia sentido às pessoas aparecerem nas lojas para comprar algo”, diz Ben Cavender, analista sênior da consultoria China Market Research Group. “Em 2018, não está claro o que a Apple vende como drasticamente diferente ou melhor do que qualquer outra no mercado.”
A exposição cada vez menor da Apple ao mercado chinês também coincide com eventos recentes na esfera geopolítica. O regime autoritário chinês vem se tornando cada vez mais repressivo nos últimos anos. “O Partido Comunista Chinês está aumentando seu controle sobre a burocracia estatal, a mídia, o discurso online, grupos religiosos, universidades, empresas e associações da sociedade civil […]”, de acordo com o centro Freedom House. Em 2018, o Congresso Nacional do Povo alterou a constituição do país para remover o limite de dois mandatos do cargo de presidente. A emenda, que foi aceita, por unanimidade, concedeu ao presidente Xi Jinping o direito de governar indefinidamente. Seria Xi Jinping, então, uma espécie híbrida de presidente com ditador? Um presitador?
Questões geopolíticas à parte, eu não acredito que essas questões de liberdade e direitos humanos sejam de preocupação genuína para capitalistas, mesmo para uma autoproclamada defensora dos direitos humanos como a Apple. A questão é que uma reviravolta em direção ao autoritarismo (ou mais autoritarismo, como nesse caso) assusta qualquer capitalista. Esse impacto da política sobre as economias é conhecido pelos profissionais como ciclos políticos. Quando as expectativas se tornam obscuras, investidores suspendem planos de investimento ou remanejam capital para oportunidades alternativas, onde seu dinheiro pode estar em menor risco. Capitalistas globais deste tipo são movidos por interesses próprios, e não por crenças altruísticas, independentemente do quanto seu marketing tente colar a imagem de bastião dos direitos humanos.
No entanto, a administração central chinesa encontrou uma maneira de desviar dessas pressões. Se os investidores estrangeiros temem as políticas de Pequim, o partido tem dinheiro a rodo para financiar fabricantes nacionais, assim como fez com todas as marcas chinesas que citei aqui. Se as situações piorarem no futuro, a Apple estará bloqueada, sem uma estratégia de desinvestimento viável em alguns de seus negócios. De acordo com seus relatórios anuais, ativos fixos no país consistem principalmente em ferramentas, equipamentos de fabricação, infraestrutura e outros ativos ligados às Apple Stores. Ferramentas e equipamentos podem ser movidos para qualquer lugar do mundo. Lojas de varejo? Um pouco difícil.
O cenário de uma indústria chinesa de smartphones fechado à concorrência estrangeira já é uma realidade. Os players nacionais respondem por mais de 80% do mercado doméstico, enquanto a Apple luta para manter sua fatia de 9%. O desastroso market share de 1% da Samsung segue um boicote contra empresas sul-coreanas, iniciado após a Coreia do Sul anunciar que está trabalhando com os EUA em um sistema de defesa antimíssil, segundo o analista Cam MacMurchy:
Há muitos, muitos mais exemplos disso, até mesmo contra empresas americanas. Alguns protestos são genuinamente espontâneos (como esse envolvendo a marca Dolce & Gabbana), mas os liderados pelo governo são os que mais causam impacto. O governo da China tem enorme poder para influenciar decisões de compra, principalmente ao enquadrar certas empresas como anti-China.
A situação pode piorar no futuro próximo, já que Pequim não esconde que a Apple é um alvo e também uma “moeda de troca” na guerra comercial com os EUA. “A China é, de longe, o mercado externo mais importante para a Apple, deixando-a vulnerável se o povo chinês torná-la alvo de ira e sentimento nacionalista”, afirmou o People’s Daily em um artigo.
Essa publicação é um jornal oficial do Partido Comunista, que fornece informações diretas sobre as próximas políticas e pontos de vista de Pequim. O artigo deixa uma ameaça implícita:
A China não quer fechar suas portas à Apple apesar do conflito comercial, mas se a empresa americana quiser ganhar um bom dinheiro na China, precisa compartilhar seu investimento em desenvolvimento com o povo chinês.
A China pode empurrar a concorrência para fora de seus mercados domésticos, mas as fabricantes chinesas ainda contam com tecnologias ocidentais, como o sistema operacional Android e a arquitetura ARM, que são plataformas essenciais em seus produtos.
Isso não deve ser entendido que sua receita para o sucesso dependa exclusivamente de produção em massa, logística e economias de escala. Algumas novas categorias de produto também surgiram lá, como cigarros eletrônicos, powerbanks, scooters elétricas, drones — para citar apenas alguns. A DJI, sediada em Shenzhen, é a líder mundial em drones civis e comerciais, e é responsável por mais de 70% do mercado de drones.
Muito parecido com o modo como as indústrias japonesa e sul-coreana tornaram-se potências industriais, parece que os fabricantes de smartphones chineses dominaram, e até superaram, o design e a inovação ocidentais — isso com uma pequena ajuda do Partido Comunista. O que está em aberto é se a Apple ainda tem um lugar na China.
Artigo publicado originalmente em inglês, no Medium.
imagem: Nikktage / Reuters