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Spoiler: o caso do DoJ provavelmente não dará em nada

HakanGider / Shutterstock.com
Logo da Apple ao fundo com martelo de juiz (justiça)

Se você já não aguenta mais ver notícias sobre leis e processos regulatórios envolvendo a Apple, você definitivamente não está sozinho. Ainda assim, eu tenho uma péssima notícia para lhe dar: tudo isso está apenas começando.

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Quem aqui se lembra do processo que a Apple abriu contra a Samsung em 2011, acusando a gigante coreana de copiar a lição de casa com os primeiros celulares e tablets da linha Galaxy? Se você acompanhou esse processo (dois, na verdade) de perto, provavelmente irá se recordar que, dentre as decisões, os recursos, os novos julgamentos e todo o vai e vem envolvendo o cálculo da multa, foram longos sete anos até que ambas chegassem a um acordo fora dos tribunais para colocar um ponto final na coisa toda.

E que tal o processo que a patent troll VirnetX abriu contra a Apple em 2010 por conta do FaceTime, do iMessage e de VPNs 1Virtual private networks, ou redes privadas virtuais., e que só foi concluído há menos de dois meses? Aqui, a coisa foi e voltou tantas vezes que nem mesmo os advogados de qualquer parte envolvida saberia explicar com clareza o caminho percorrido ao longo desses quase 14 anos.

Se o histórico desses processos nos ensina alguma coisa, é que esses imbróglios levam muito, mas muito mais tempo do que pareceria razoável para serem resolvidos. Já outra coisa que vale observar é que a Apple venceu os dois casos, o que especialmente no processo da VirnetX pareceu ser algo extremamente improvável durante a maior parte do tempo.

DMA vs. DoJ

Olhando para os casos mais recentes envolvendo questões regulatórias e a Apple, é claro que a DMA 2Digital Markets Act, ou Lei dos Mercados Digitais. na Europa e o caso do DoJ 3Department of Justice, ou Departamento de Justiça. nos Estados Unidos se destacam. Mas as semelhanças entre eles acabam praticamente aí.

Primeiro, porque na Europa a questão envolve não só a Apple, mas sim as principais empresas de tecnologia (as chamadas Big Techs). Depois, porque a Europa está fazendo algo que o governo americano tem uma certa alergia a fazer 4Dados os preceitos de liberdades e de não intervencionismo do governo no mercado., que é legislar ao invés de tentar tapar o sol com a peneira remediar um caso pontual, na esperança de isso servir de exemplo para impedir que outros façam a mesma coisa.

Na Europa, um grupo de 27 países passou anos negociando para chegar a um acordo sobre uma série de novas leis que se aplicarão a todas as empresas cujo tamanho ou impacto ultrapassem um limiar. As novas leis levam em conta as realidades e dinâmicas de mercado que ainda não existiam quando as últimas leis foram aprovadas, incluindo o fato de que as empresas de tecnologia geralmente têm muito mais dinheiro do que o orçamento que os governos disponibilizam para gastar com processos individuais, então nem adianta tentar.

Já nos EUA, o processo do DoJ contra a Apple é justamente o oposto. Sem ter no horizonte uma revisão das leis que regem o mercado desde pelo menos 1890 5Data da aprovação da Lei Antitruste Sherman, que serve como a base do processo do departamento contra a Apple., o DoJ fez o que pôde: registrou uma acusação pontual contra uma única empresa e que, na melhor das hipóteses, ele vencerá sem que isso gere qualquer impacto positivo para o resto do mercado.

Na realidade, se o DoJ vencer o processo, ele deixará o mercado ainda mais exposto. Duvida? Vamos lá. A última grande vitória deles em um processo de monopólio foi contra a Microsoft, nos anos 1990, também apoiado na Lei Antitruste Sherman (processo esse que também levou uma década para se concluir). O próprio departamento cita isso múltiplas vezes na ação contra a Apple, incluindo o estranho argumento de que a Apple só é gigante porque ele podou a Microsoft nos anos 1990. Ou seja, resolveu… o que, exatamente?

Aliás, avançando para 2024, qual é a empresa mais valiosa do mundo? Aqui vai uma dica: não é a Apple, mas sim a dona do LinkedIn, do GitHub, da Activision Blizzard, da ZeniMax, do Skype, do Yammer, da Double Fine, da Nuance, do Xamarin, do SwiftKey, do 6Wunderkinder, da Mojang e outras quase 40 subsidiárias e concorrentes adquiridos depois do tal processo de práticas anticompetitivas dos anos 1990. Parabéns aos envolvidos.

Os problemas do processo do DoJ

Quem já procurou se familiarizar com litígios passados envolvendo monopólio nos EUA sabe que existem duas premissas básicas.

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Primeiro, ser um monopólio não ilegal. Mas existem coisas que as empresas só podem fazer quando elas não são um monopólio, mas que se tornam ilegais quando a situação muda.

Em segundo lugar, todo processo desse tipo só tem chance de dar certo se a acusação conseguir definir muito bem o mercado sobre o qual a empresa tem o monopólio. E aqui, o argumento do departamento contra a Apple parece ser bem fraco.

Isso porque, como a Apple não tem um monopólio sobre todo o mercado de smartphones, o DoJ inventou uma categoria chamada “smartphones de alto desempenho”, formada só pela Apple, pelo Google e pela Samsung. Ou seja, se o juiz ou a juíza do caso concluir que o departamento fez uma espécie de engenharia reversa para inventar um mercado porque só assim a conta do monopólio da Apple daria certo, o processo acaba aí.

Para piorar, outra grande parte dos argumentos do DoJ parece se apoiar naquele cansado retrato de que os usuários de iPhone são, na verdade, vítimas de uma espécie de Síndrome de Estocolmo Cupertino, incapazes de enxergar a realidade de que são reféns de um grande plano para não deixá-las fugir, em vez de simplesmente terem escolhido e gostarem de seus telefones. Esse foi um argumento que não colou no processo da Epic Games e dificilmente colará aqui também.

Mais do que isso, mesmo que o departamento consiga comprovar que todas as funcionalidades de segurança, privacidade, facilidade de uso, integração entre as diferentes plataformas oferecidas pela Apple são, na verdade, artifícios para manter seus clientes ignorantemente satisfeitos, o resultado ainda é que esses clientes estão satisfeitos, mais seguros e têm mais privacidade em seus dispositivos que funcionam de forma integrada e que são fáceis de usar. E nada disso é um crime.

Os acertos do processo do DoJ

A ironia é que, olhando para as acusações de um jeito mais abrangente, o processo do DoJ faz sentido.

Ignoremos por um momento o segmento imaginário sobre o qual a Apple teria esse monopólio, ou o argumento de a Apple quer usar o novo CarPlay para passar a dominar toda a indústria automotiva, ou que o departamento insinua que a Apple deveria ter que fazer um Apple Watch para Android porque… algo sobre concorrência, ou que um dos cinco pilares das acusações está desatualizado agora que serviços de jogos na nuvem já são permitidos na App Store.

Aliás, ignoremos também a falta de argumentos pontuais básicos que funcionariam a favor do DoJ, como por exemplo qualquer coisa envolvendo a App Store, ou a verticalização de produtos em concorrência direta com plataformas como o Spotify.

Ignorando tudo isso, o cerne das acusações do Departamento é o seguinte: a Apple limita intencionalmente o alcance da concorrência dentro dos seus próprios produtos, até mesmo quando não há questões de privacidade ou segurança envolvidas. E se ela for entendida como um monopólio, isso é ilegal.

Um dos argumentos mais fortes sobre isso está no parágrafo 42, no qual o DoJ diz que a Apple escolhe arbitrariamente e para benefício próprio quais APIs 6Application programming interfaces, ou interfaces de programação de aplicações. são públicas e quais são privadas, limitando a utilidade dos apps de terceiros. Esse (e agora sou eu falando) não é o caso de todas as APIs privadas, mas definitivamente é o caso de muitas delas.

Aqui, talvez o departamento tenha algo promissor. É claro que a Apple provavelmente consegue argumentar sobre qualquer API privada e dizer que ela é assim ou por segurança, ou por privacidade, ou pelos dois. Ainda assim, dá para imaginar ela sendo obrigada a manter algumas APIs privadas por no máximo alguns anos, e depois ter de abri-las para o uso geral. Em menor grau, seria como o funcionamento das patentes da indústria farmacêutica, ainda que com um prazo bem mais curto.

Já outro bom argumento feito pelo DoJ diz respeito ao fato de não ser possível definir outros apps de mensagem como o app padrão para recebimento de SMS 7Short message service, ou serviço de mensagens curtas.. O problema é que, como eu não tenho a menor expectativa de que esse processo dure menos de uma década, dá para imaginar a Apple implementando algo assim num iOS 18, 19, 23, 25.

Aliás, essa é basicamente a minha expectativa para a maior parte dos problemas levantados pelo DoJ. Assim como foi na Europa, em que a Apple não cumpriu inicialmente o que foi definido pela DMA e aos poucos foi — e segue — cedendo (ou seja, evitou o “risco” de oferecer mais do que o básico do básico requerido por lei), ela provavelmente modificará o funcionamento do iOS gradualmente, minando o peso das acusações do DoJ, mas ainda assim mantendo essencialmente o mesmo controle sobre suas plataformas.

Além disso, ela obviamente buscará arrastar o processo pelo maior tempo que ela puder, tornando-o o mais dispendioso possível, na tentativa de forçar a mão do DoJ e negociar um acordo.

Resumo da ópera

Que fique claro: as acusações feitas pelo DoJ contra a Apple fazem sentido. A empresa faz absolutamente de tudo para limitar as ameaças da concorrência ao dificultar a migração para outras plataformas, ela faz absolutamente de tudo para rentabilizar ao máximo os próprios usuários, e ela faz absolutamente de tudo para limitar o alcance de serviços concorrentes nos produtos dela. Além disso, ela sem sombra de dúvidas vira o saleiro de ”privacidade” e “segurança” sempre que alguém (e especialmente algum órgão regulatório) questiona alguma dessas atitudes.

O problema é que o DoJ sabe que tudo isso só é um crime se a Apple for um monopólio, e ele precisou inventar uma categoria de mercado para fazer a conta do monopólio fechar. Isso não deve colar. E mesmo que cole, as consequências do processo que ele venceu contra a Microsoft nos anos 1990 mostram que o impacto real no mercado seria mínimo.

Enquanto os EUA não fizerem como a Europa, e começarem a atualizar as leis que todas as empresas devem seguir, não há processos no mundo que sejam capazes de solucionar a raiz do problema, que é o fato de que as empresas já sabem muito bem como contornar as restrições de leis desatualizadas (muitas vezes, há mais de um século). A Apple sabe disso, a Microsoft certamente sabe disso e, muito provavelmente, o DoJ sabe disso também.

Notas de rodapé

  • 1
    Virtual private networks, ou redes privadas virtuais.
  • 2
    Digital Markets Act, ou Lei dos Mercados Digitais.
  • 3
    Department of Justice, ou Departamento de Justiça.
  • 4
    Dados os preceitos de liberdades e de não intervencionismo do governo no mercado.
  • 5
    Data da aprovação da Lei Antitruste Sherman, que serve como a base do processo do departamento contra a Apple.
  • 6
    Application programming interfaces, ou interfaces de programação de aplicações.
  • 7
    Short message service, ou serviço de mensagens curtas.

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