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A Apple pode salvar Hollywood? (Ou: a Apple quer salvar Hollywood?)

Uma história sobre Martin Scorsese, a crise hollywoodiana e uma certa empresa de Cupertino
Martin Scorsese

Ato 1, cena 1: Nova York, março de 1976. Um jovem cineasta, de nome Martin Charles Scorsese, lança no Coronet Theatre um filme chamado “Taxi Driver”. Algumas semanas depois, o rapaz cruza o Atlântico, exibe sua obra no Festival de Cannes e sai da paradisíaca cidade francesa segurando nas mãos o mais prestigioso prêmio do cinema mundial, a Palma de Ouro.

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Ato 1, cena 2: Califórnia, abril de 1976. Enquanto Scorsese faz história na Costa Leste, dois outros jovens rapazes dão os primeiros passos para também mudar o mundo, mas de forma muito diferente — refiro-me, como você provavelmente já deve ter sacado, a Steven Paul Jobs e Stephen Gary Wozniak, que, em uma garagem de Los Altos, estão prestes a fundar uma pequena empresa chamada Apple Computer Company.

Você provavelmente conhece os atos seguintes dessa história. Scorsese atravessa as décadas enfileirando obras-primas como “Touro Indomável”, “Os Bons Companheiros”, “Os Infiltrados”, “Silêncio” e “O Irlandês”, cravando seu nome na história como o maior cineasta estadunidense vivo.

Mais do que isso, o diretor torna-se um dos mais figadais defensores da preservação da arte cinematográfica: por meio do World Cinema Project, Scorsese dedica parte da sua vida a restaurar obras perdidas no tempo e espaço, e manter viva a história da sétima arte, não importa de onde ela venha.

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Considerando que você está no MacMagazine, é provável que você seja ainda mais familiar com os rumos trilhados pela pequena empresa fundada por Jobs e Wozniak. Dos primórdios do Apple I na garagem de Los Altos, a Maçã cria pelo menos dois produtos que alteram o curso da humanidade, torna-se uma empresa de três trilhões de dólares e ganha seu ingresso sem escalas para o âmago da cultura pop mundial.

Jobs nos deixa em 2011 e Woz está muito ocupado sendo jurado em reality shows (ou dando entrevistas para este que vos escreve — desculpem, nunca vou parar de me gabar disso). A Apple, entretanto, está mais poderosa do que nunca.

Todo o preâmbulo acima tem como objetivo estabelecer o drama do aguardado encontro entre nossos dois protagonistas: Apple e Scorsese. Sim, porque contra todas as expectativas, o destino dá um jeito de colocar os caminhos dos dois heróis dessa história na mesma rota: no seu trajeto rumo ao topo do mundo, a Maçã resolve adicionar ao seu catálogo de serviços uma plataforma de filmes e séries chamada Apple TV+.

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Uma coisa leva à outra e, em outubro próximo, o mundo (fora Cannes, que já teve esse gostinho) poderá assistir ao vigésimo sexto filme do agora octagenário cineasta, “Killers of the Flower Moon” (ou “Assassinos da Lua das Flores”, em português).

YouTube video
A bem da verdade, o primeiro encontro entre Apple e Scorsese aconteceu alguns anos antes, neste comercial. Mas quanto menos falarmos disso, melhor.

Agora imagine você voltar 47 anos no tempo e contar ao jovem Scorsese que, quase cinco décadas adiante, um dos seus filmes — um épico de três horas e vinte minutos com orçamento de US$200 milhões e dois dos atores mais celebrados de Hollywood, incluindo o mesmo cara de “Taxi Driver” — será financiado não por um grande estúdio centenário, mas por uma empresa de computadores. Pois é.

O momento do encontro

Acontece que Apple e Scorsese não estão se encontrando num momento, digamos, tranquilo para Hollywood e para o universo do audiovisual. Uma crise, que já vem sendo desenhada há alguns anos, agora parece caminhar rumo a um ponto insustentável e poucas saídas se desenham para o problema.

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Você provavelmente tem acompanhado algumas das facetas mais comentadas dessa crise, como a nova greve dos roteiristas dos EUA ou os pedidos de limites legais para a utilização de ferramentas de inteligência artificial na produção artística.

Talvez você também tenha ouvido falar sobre algumas plataformas de streaming, como o Disney+ e o Max (ex-HBO Max), literalmente apagando conteúdos recém-produzidos (ou mesmo enterrando filmes já prontos e inéditos) para… economizar com impostos. São produções que, efetivamente, deixam de existir, impossíveis de serem acessadas (legalmente, pelo menos) pelo público — justamente a antítese da missão de Scorsese, de preservar e restaurar obras feitas pelo mundo.

A crise hollywoodiana, claro, não acontece numa redoma isolada: ela está inserida num momento de instabilidade do próprio capitalismo, com reflexos na economia, na indústria, na política e na sociedade em geral. Mas em Hollywood, especificamente, esse ponto de desequilíbrio se manifesta de maneiras visíveis a olho nu por qualquer pessoa: a produção (seja no cinema ou na TV) parece se concentrar progressivamente nos grandes blockbusters e apelar para um gosto cada vez mais superficial e infantilizado, subordinado aos cérebros com curta capacidade de concentração moldados pela nova era das mídias sociais.

Dizem que é nos momentos de crise que surgem as oportunidades, e de fato Hollywood já viveu isso antes. Aliás, o próprio Scorsese surge um desses momentos: a queda do sistema dos grandes estúdios e a decadência das produções megalomaníacas dos anos 1960 deu lugar, nos EUA, à chamada geração da Nova Hollywood, que — capitaneada por nomes como Steven Spielberg, George Lucas, Brian de Palma, Woody Allen, Francis Ford Coppola e o próprio Martin — trouxe inspirações da Nouvelle Vague francesa e dos movimentos de contracultura para criar uma linguagem cinematográfica mais politizada e mais centrada na figura do autor.

O problema é que, no contexto atual, o florescer da nova geração de vozes parece ser rapidamente fagocitado pela própria máquina que está em crise. Basta notarmos a quantidade de jovens cineastas que, após despontarem com uma produção independente elogiada, são rapidamente (antes que seu cachê fique muito caro) levados a um escritório e convidados a assinar um contrato de múltiplos filmes para dirigir uma franquia de super-heróis, carros-robôs, dinossauros ou coisa do tipo. E isso é considerado um grande reconhecimento em suas carreiras! De fato, ótimo para eles… pessoalmente. Para a arte, nem tanto.

Adendo #1: claro que é possível produzir obras-primas dentro de uma franquia de super-heróis ou dinossauros, mas isso se torna cada vez mais difícil considerando o controle dos estúdios dentro de seus chamados “universos cinematográficos”, as exigências dos investidores, o fato de que sua produção pode ser cancelada e enterrada a qualquer momento, sem maiores rodeios… enfim, vocês pegaram a ideia.

Tudo isso nos leva às duas perguntas propostas no título deste texto. Ora, a Apple vale US$3 trilhões, tem US$179 bilhões em caixa e está disposta a dar US$200 milhões para que um cineasta produza um filme de 3h20 sem grande apelo comercial e sem estar atrelado a uma franquia com grande base de fãs ou propriedade intelectual preexistente. Será que não está aí a solução para os problemas de Hollywood?

Adendo #2: também não quero sugerir que a solução para os problemas de Hollywood é entregar cheques em branco para que todos os cineastas produzam épicos de 3h20 com pouco apelo comercial. Mas qualquer caminho para uma relação mais sustentável entre criadores e executivos passa por uma reflexão sobre liberdade artística e uma maior abertura para projetos fora da caixa.

Bom… difícil dizer. Primeiro porque nem todo mundo é Scorsese (de fato, quase ninguém é). Segundo porque, para salvar Hollywood, primeiro a Apple precisa ser relevante em Hollywood — e ter alguns filmes estrelados e um Oscar na prateleira podem ajudar, mas ainda não são tudo. E terceiro porque, bom, não sabemos se salvar Hollywood está exatamente na lista de prioridades de Tim Cook e sua turma.

Talvez o idealismo de Jobs, uma figura com uma paixão ardente (e visível) pelo universo das artes, fosse mais apropriado para conduzir a Maçã em uma empreitada como essa. Mas teremos de nos contentar com o pragmatismo de Cook e as visões mais, digamos, tecnocratas da alta cúpula da Apple de 2023.

Resumindo…

O cenário é estranho, está mudando rápido e não sabemos onde tudo isso vai dar. E, querendo ou não, a Apple agora está no meio dessa história toda. Se o Apple TV+ vai tomar uma emergir numa posição de protagonismo depois dessa tempestade, só o tempo — e as decisões tomadas em Cupertino — dirá.


Todo o texto acima foi um preâmbulo para dizer: olá! Receba as boas-vindas à mais nova coluna semanal do MacMagazine. Eu sou Bruno Santana, e talvez você me conheça de alguns dos 6.048 artigos que eu publiquei por aqui entre 2016 e 2022. É um prazer estar de volta!

Nesse novo espaço, como vocês devem ter percebido, vamos embarcar no universo do Apple TV+ e na relação da Apple com Hollywood e com os mundos do cinema e da TV. A regra aqui é que, bom, não há regras: vocês verão críticas de novos filmes e séries da plataforma, prévias de conteúdos futuros, perfis de artistas importantes que porventura cheguem à Maçã ou, como vimos acima, discussões sobre assuntos em voga no terreno do audiovisual. E o que mais o futuro nos reservar, também.

A propósito, você pode me seguir no Letterboxd para conferir se nossos gostos batem. Se não, sinta-se à vontade para me xingar1É brincadeira, não pode xingar nos comentários. Mas fique à vontade para discordar! abaixo por ter dado só três estrelas para “CODA”.

Notas de rodapé

  • 1
    É brincadeira, não pode xingar nos comentários. Mas fique à vontade para discordar!

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