O melhor pedaço da Maçã.

Afinal, a quem servirá um “Apple Car”?

Se a Apple quiser revolucionar novamente a indústria, terá de ir além da perspectiva individual

Confesso que me divirto muito com os comentários de vocês todas as vezes que publicamos matérias sobre o famigerado “Apple Car”. Não é para menos: considerando os preços astronômicos da Maçã no Brasil, é divertido imaginar qual combinação de órgãos humanos e antimatéria a empresa cobraria por um dos seus supostos veículos por aqui — se é que tal criação algum dia pisaria suas rodas nos asfaltos da nossa querida república, claro.

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Para além da galhofa, entretanto, os comentários desencadearam algumas reflexões aqui com meus botões — reflexões essas que provocaram este artigo que você lê agora.

A questão-guia é justamente a do título acima: caso o “Apple Car” algum dia de fato venha a existir — e todas as notícias indicam que sim, isso acontecerá, ainda que a longo prazo —, que forma ele precisará assumir para… valer a pena todo o esforço? De que forma esse bendito carro poderá fazer alguma diferença no mundo, no espírito com o qual Steve Jobs sempre guiou a Apple e que Tim Cook repetidamente promete seguir?

Digo isso porque, por mais que obviamente nem todos os produtos da Maçã tenham sido revolucionários (lembram do carregador de pilhas da empresa? É, eu também não lembrava), todas as entradas da empresa em novos mercados foram, no mínimo impactantes.

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Mac? Revolucionou a computação pessoal. iPod? Virou parte da cultura pop e mudou a nossa relação com a música. iPhone? Mudou o mundo para sempre. iPad? Apple Watch? M1? Todos membros mais ou menos recentes deste seleto grupo, em maiores ou menores níveis de transformação.

O segmento automotivo, portanto, seria a entrada mais drástica da história de Cupertino: um terreno de paradigmas completamente diferentes, com uma lógica particular muito consolidada e tradições centenárias, criadas e mantidas por um punhado de empresas titânicas — desde as mais antigas, como a General Motors e a Toyota, até recém-chegadas deveras disruptivas, como a Tesla.

Um outro ponto a ser considerado é que, ao contrário das categorias anteriormente transformadas pela Apple (computadores pessoais, tocadores de música, smartphones e afins), a própria ideia de “carro” não está exatamente em seus áureos tempos. Muito se discute sobre a influência negativa da predominância do transporte individual na vida em sociedade, no planejamento urbano e no eterno embate entre o individualismo e a coletividade.

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Com todas essas questões postas à mesa, vamos mais a fundo na questão-guia deste artigo: afinal de contas, que estrada o Projeto Titan (que é o codinome dado ao desenvolvimento do “Apple Car”) deverá seguir se a Maçã quiser, de fato, mudar o mundo mais uma vez?

Autônomo, mas quão autônomo?

Ao menos uma coisa — a não ser que os rumores estejam catastroficamente enganados — é certa sobre o “Apple Car”: ele será um carro autônomo. Isto quer dizer que, em determinados momentos, você poderá soltar o volante, descansar os pés e deixar que o próprio veículo se dirija sozinho — tudo isso, claro, graças a um conjunto formidável de sensores, câmeras e inteligência artificial.

O que permanece uma incógnita é o quão autônomo o veículo será. Já temos, hoje, rodando nas ruas do planeta um sistema (o Autopilot, da Tesla) capaz de dirigir um carro de maneira razoavelmente independente, mas por algumas limitações — tecnológicas e legislativas — esse nível de independência ainda é baixo. Isto é, o motorista ainda tem que estar olhando para a rodovia com atenção constante e em posição pronta para assumir o controle no caso de qualquer intercorrência.

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A esse ponto, vale citar a classificação de carros autônomos em seis níveis, criada pela SAE International (Sociedade de Engenheiros Automotivos):

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  1. Um sistema que exibe alertas e pode intervir em algumas funções, mas não possui controle do veículo.
  2. Hands on: compartilha o controle do veículo entre o motorista e o sistema operacional; o condutor precisa manter as mãos no volante a todo momento. Como exemplo, temos os sistemas de cruise control disponíveis em alguns veículos mais caros.
  3. Hands off: dá mais controle ao sistema automatizado, permitindo que o motorista tire as mãos do volante (dependendo da legislação) e simplesmente mantenha-se atento à rodovia. O Tesla Autopilot está aqui.
  4. Eyes off: já parte para sistemas mais elaborados e inteligentes, permitindo que o motorista tire os olhos da estrada e se ocupe com outras atividades, como usar o celular. O condutor precisa estar em posição, entretanto, para assumir o controle rapidamente no caso de qualquer eventualidade.
  5. Mind off: uma versão mais avançada do nível 3 que permite ao “condutor” se desligar completamente do processo de direção e até mesmo dormir no banco do motorista, mas funciona somente dentro de áreas delimitadas ou em circunstâncias específicas — fora dessas áreas e condições, o motorista ainda seria acionado.
  6. Semelhante ao nível 4, mas com capacidade de funcionar em qualquer lugar sob quaisquer condições, eliminando a própria figura do motorista — aqui, todas as pessoas no carro são passageiros, e o veículo sequer precisa ter um volante ou pedais.

Se você teve um déjà vu com a descrição do último item acima, eu compreendo: recentemente, o repórter Mark Gurman — um dos insiders mais certeiros do universo da Maçã — afirmou que, no mais recente estágio de desenvolvimento do Projeto Titan, o “Apple Car” é um protótipo completamente autônomo, sem volante ou pedais. Um veículo autoguiado do nível 4 ou 5, portanto, dependendo da área em que ele possa ser operado.

Não é nem preciso dizer que, caso as informações sejam verídicas, as ambições da Apple são astronômicas: os sistemas de autonomia veicular mais sofisticados disponíveis hoje no mercado são do nível 2, e a Maçã quer pular diretamente para os níveis finais da classificação? Soa deveras megalomaníaco!

Por outro lado, essa “extravagância” soa exatamente como algo que a Apple faria. Ora, o iPhone, quando lançado, também pulou vários “níveis” do que as pessoas imaginavam que um smartphone era capaz de fazer — assim como o Mac, ou o iPod, ou várias das outras categorias de produtos citados acima.

Entretanto, como já mencionei, esse desafio torna-se ainda mais formidável por estarmos falando de um veículo. Na minha opinião, trata-se de um desafio que perpassa três aspectos principais.

Os três desafios

Técnico

O primeiro é, naturalmente, o aspecto técnico. Criar um sistema de direção completamente autônoma, como você deve imaginar, é uma tarefa de arrancar os cabelos. Não é “simplesmente” um smartphone que fica no seu bolso: estamos falando de veículos de uma tonelada ou mais, transitando a dezenas (ou centenas!) de quilômetros por ora, transportando pessoas, lidando com mais centenas de outras pessoas à sua volta… enfim, toda a responsabilidade que um motorista tem, mas nas mãos de um sistema automatizado.

É claro que a Apple, entre as diversas reviravoltas e idas e vindas do Projeto Titan, está certamente muito empenhada nisso: sabemos que há cerca de 70 veículos equipados com o projeto de direção autônoma da Maçã rodando pelos Estados Unidos, com cerca de 140 motoristas registrados. Os testes são intensos desde já, mesmo anos antes de qualquer possibilidade de vermos o “Apple Car” definitivo — já soubemos, inclusive, de algumas colisões envolvendo os carros de teste da empresa, nenhuma delas com fatalidades.

Falando nisso, vale lembrar as infindáveis questões éticas e morais complicadíssimas que envolvem os sistemas de direção autônoma. Você provavelmente já leu sobre a mais clássica delas: se o veículo se vê numa situação de colisão iminente e inevitável, o que ele deve fazer — agir para salvar a vida do motorista ou, digamos, de um grupo de crianças atravessando a rua? E se, em vez de um grupo de crianças, a provável vítima for um idoso? O sistema sequer pode — ou tem a capacidade de — fazer essa distinção? São discussões que excedem o aspecto meramente técnico e que precisam ser refletidas.

Indo além, é necessário pensar — e regular — a questão da culpa no caso de acidentes. No caso da colisão de um veículo totalmente autônomo com vítimas fatais, quem é responsável: o motorista ou a fabricante? Óbvio que, num mundo ideal, a popularização dos carros autônomos diminuiria significativamente a ocorrência de acidentes, mas sabemos que, na prática, esse número nunca cairá a zero.

As questões, portanto, precisam ser definidas antes que os carros autoguiados se popularizem. Você pode se aprofundar mais nessa questão navegando pelo jogo de questionários Moral Machine, criado por professores e estudantes de uma série de universidades dos Estados Unidos — e que conta com uma versão em português, inclusive.

Legislativo

Isso nos leva ao segundo aspecto que a Apple precisará superar, que é o legislativo. Ou, mais precisamente, o “limbo legal” no qual vivem os carros autoguiados em boa parte do mundo, hoje. Vários países não têm legislações específicas para essa categoria de locomoção, e muitas regulamentações do tipo estão ainda em discussão em diferentes países e territórios.

Nos EUA, por exemplo, não há nenhuma lei federal proibido o uso de carros autônomos avançados (do nível 3 ou superior), mas vários estados têm regulações próprias que, por ora, proíbem a circulação desse tipo de veículo em situações que não sejam de testes. A União Europeia, por sua vez, ainda não tem uma regulamentação centralizada sobre o tema, enquanto a China é um dos únicos países com legislação definida sobre a automação veicular em seus diversos níveis, com zonas especiais para realização de testes.

O Brasil, por sua vez, também não tem uma legislação específica para carros autônomos. “Guiar” um veículo desses por aqui, entretanto, representaria uma infração média — isso porque o Código de Trânsito Brasileiro define, no artigo 252, que “dirigir o veículo com apenas uma das mãos, exceto quando deva fazer sinais regulamentares de braço, mudar a marcha do veículo ou acionar equipamentos e acessórios do veículo” é irregular.

O CTB, claro, não leva em conta a existência de carros autônomos, e precisará ser atualizado antes de a categoria desembarcar no Brasil. Para quem quiser se aprofundar no assunto, esse artigo da AB2L pode ser uma ótima leitura.

Ao longo dos próximos anos, conforme a tecnologia de direção autônoma vá avançando, é natural que as discussões públicas acerca do assunto também evoluam — e, portanto, as leis também. A Apple, claro, tem um exército de lobistas prontos para trabalhar nisso (e provavelmente já trabalhando), assim como as outras empresas envolvidas na tecnologia. Portanto, ainda que este seja um aspecto espinhoso, ele tende a ser profundamente explorado nos próximos tempos.

Cultural

O terceiro aspecto a ser superado pela Apple, e o que eu acredito ser o mais complicado no cenário geral das coisas, é o cultural. E este, dada a complexidade da coisa, merece uma seção separada neste pequeno textinho.

Muito já foi dito, escrito e pensado sobre a influência fundamental dos carros em diversos aspectos da sociedade ao longo do último século e meio. Um carro é muito mais do que um simples veículo automotor destinado a levar passageiros do ponto “A” ao ponto “B”: ele pode ser um símbolo de status, um rito de passagem, um meio de ascensão social, uma ferramenta de trabalho, o sonho de alguns, o pesadelo de outros… ele pode ser, entre a cultura masculina predominante, uma extensão do pênis e uma simbologia da figura feminina. Sim, é complexo.

Sob óticas mais práticas, o advento do carro — ou, mais precisamente, do transporte automotivo individual — causou mudanças profundas na própria maneira que vivemos em sociedade. Em boa parte do mundo, cidades foram transformadas (ou, em alguns casos, quase totalmente derrubadas e reconstruídas) para se adaptar a uma lógica “carrocêntrica”, priorizando as autoestradas e as avenidas em vez do chamado urbanismo caminhável, que dá mais ênfase ao pedestre e à exploração do espaço urbano a pé.

Uma boa thread para quem quiser se aprofundar mais no assunto.

Quando o “Apple Car” chegar aos olhos do mundo, creio eu, ele terá de lutar contra essa carga cultural centenária — ou ao menos parte dela. Seja lá qual for a forma que o carro da Maçã há de assumir (mais sobre isso adiante), não me parece que a companhia esteja interessada em entrar nesse mercado para repetir as mesmas convenções já incrustadas na cultura do carro.

Em outras palavras, eu não vejo a Apple competindo por potência, ou vendendo carros caríssimos que sejam símbolos de status no nível Ferrari ou Lamborghini, ou fazendo campanhas publicitárias que reforcem o mito do automóvel e conceitos abstratos como o prazer de dirigir. Outras empresas já fazem isso muito melhor, e há muito mais tempo, do que a Apple, e eu não imagino Cook e sua turma querendo se juntar a esse métier. Não é, para utilizar a palavra da moda, disruptivo. É caro, é luxuoso, é uma brincadeira para milionários, mas não é Apple-like.

Portanto, o desafio principal da Apple, caso ela queira mudar o mundo mais uma vez, é criar (ou ajudar a criar) uma nova cultura do carro: uma cultura mais moderna, mais sustentável, mais em sincronia com o mundo à sua volta, mais conectada e — por que não — mais acessível, também.

As marés do mundo, ao menos, estão ao lado da Maçã. Quando falei, nos parágrafos acima, de toda a carga cultural trazida pela ideia do carro, eu convenientemente deixei de citar que essa cultura está em um momento de intenso questionamento. Pensadores de diversas áreas do conhecimento apontam a predominância do transporte individual como causadora de uma série de problemas.

Por exemplo: as cidades projetadas para carros isolam seus habitantes, desestimulam os deslocamentos a pé, esvaziam as ruas de pedestres e tornam os espaços públicos mais inseguros. A preferência pelo transporte individual favorece os grandes congestionamentos, tornando a vida de todo mundo um pouco mais miserável — você certamente já viu aquela imagem comparando cinquenta pessoas em carros e cinquenta pessoas num ônibus.

Dica: vale ler essa entrevista da Fórum com Raquel Rolnik, um dos maiores nomes do urbanismo brasileiro e ativista pelo direito à cidade, destrinchando o tema com um pouco mais de profundidade. Destaco abaixo uma das suas declarações:

O espaço público também pode ser dos pedestres, dos ciclistas, de forma a não ser totalmente capturado pela circulação dos automóveis e dos caminhões.

Isso é uma demanda muito importante e não é uma demanda só por mobilidade, é também uma demanda por saúde, porque o modelo carrocêntrico está nos matando, matando nos acidentes de trânsito e na poluição.

A Apple, portanto, tem todas as condições de capturar esse zeitgeist, para usar uma palavra chique, e usá-lo ao seu favor. E olha que eu nem estou considerando o terrível impacto ambiental causado pela indústria dos automóveis: como o “Apple Car” naturalmente será um veículo elétrico, esse é mais um ponto positivo no qual a Maçã poderá surfar.

Em outras palavras, o cenário é propício — Cook e sua turma estão com a faca e o queijo na mão para catalisar uma mudança cultural bastante profunda na nossa relação com os automóveis. Mas como?

Talvez o “Apple Car” precise ser um serviço, não um produto

Depois de toda essa longa exposição, talvez seja o momento de dizer o que este que vos escreve pensa sobre o prospecto de um “Apple Car”. Se eu acho que o mundo precisa de um carro da Maçã? Não, não acho — ao menos não no sentido de que o que nós realmente precisamos é priorizar o transporte coletivo, as cidades planejadas para pedestres e ciclistas, o urbanismo sustentável e a cultura de comunidade.

Entretanto, sabemos que — a não ser que um cataclisma ocorra em Cupertino nos próximos anos — o “Apple Car” existirá, mais cedo ou mais tarde. E de que forma ele pode ser de fato um produto revolucionário? Na minha opinião, um caminho interessante é lançá-lo não como um produto, e sim como um serviço de locomoção.

Em outras palavras, na minha visão, ninguém teria um “Apple Car” — em vez disso, eles estariam simplesmente dispostos nas ruas, em locais estratégicos, prontos para receberem os passageiros. Uma vez dentro do veículo, basta dizer à Siri para onde você quer ir; o sistema detecta automaticamente sua identidade por meio do iPhone no seu bolso ou pelo Apple Watch no seu pulso e, ao fim da viagem, faz a cobrança no seu ID Apple. No caminho, você pode ouvir suas playlists no Apple Music ou conferir o que há de mais recente no Apple TV+. Ecossistema!

Mergulhando um pouco mais na ambição desse conceito, o “Apple Car” dos meus sonhos estaria interligado a uma rede de tráfego inteligente, conectando veículos (com graus maiores ou menores de autonomia) de transporte individual e coletivo entre si e nas centrais de controle de trânsito de cada cidade. Isso permitiria aos carros, ônibus e motocicletas trabalhar de forma muito mais proativa na escolha de rotas, além de reduzir significativamente o número de acidentes.

Na minha concepção, esta seria a real contribuição da Maçã para o mundo com o “Apple Car”: uma ajudinha num movimento maior que mudasse a mentalidade das pessoas.

O carro deixaria de ser um objeto de desejo, um artefato adquirido por pessoas e famílias para realizar todas as suas locomoções, e passaria a ser um produto destinado a profissionais ou a pessoas com necessidades específicas — ora, não é exatamente isso que está acontecendo com o computador? O carro pode muito bem seguir um movimento parecido. A cidade, enquanto isso, sofreria uma mudança profunda para estimular as pessoas a encarar as ruas, fosse a pé, via transporte público ou via os “Apple Cars” disponíveis por aí.

Óbvio, tudo o que eu falo aqui está apenas no mundo das ideias — qualquer cenário idílico como o acima descrito dependeria de uma série de fatores, como a modernização da frota de veículos atual (afinal, o “Apple Car” não andaria sozinho pelas ruas da cidade), a expansão do 5G para a troca desses dados em tempo real e até mesmo um novo tipo de planejamento urbano, mais apropriado para os veículos autônomos. Se isso já é uma visão difícil de acontecer em países de primeiro mundo, que dirá no Brasil.

Ainda assim, fica o convite à reflexão: mesmo que o “Apple Car” não seja nada disso, pensemos um pouco mais sobre a sua “missão” no mundo e sobre que mudanças reais podemos empreender para tornar a nossa vida, e a de todos à nossa volta, um pouco mais sustentável, um pouco mais agradável e um pouco mais segura. O que vocês acham?

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