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Review: uma semana com o Apple Music Classical

O app dedicado à música clássica tem potencial revolucionário, mas muito a melhorar
Apple Music Classical
Autor(a) convidado(a)

Adriano Brandão

Publicitário, empresário e desenvolvedor (nas horas vagas). Trabalhou por anos criando e mantendo sites para jornais e revistas, depois fundou uma empresa de tecnologia para publicidade online. É maluco por música clássica há 35 anos e escreve sobre o assunto há 25 — está sempre tuitando! Ele desenvolveu dois apps tocadores de música clássica (o Concertino e o Concertmaster) e também um web game diário de adivinhação de música de todos os gêneros, o Musicle. Usa Mac e iPhone há um tempão — e não se vê mudando, não.

Desde 30 de agosto de 2021, o pessoal que cobre as notícias relacionadas à Apple se viu obrigado a entrar em um mundo nem um pouco familiar. Nesse dia, a empresa de Cupertino comprou um serviço de streaming desconhecido de 99% do público: o holandês Primephonic, especializado em música clássica.

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Os 99% acima são literais. A música clássica representa, de acordo com o instituto de pesquisa Nielsen [PDF], 1% do mercado fonográfico americano. É o último gênero do levantamento de 2019, tecnicamente empatado com o jazz.

A aquisição do Primephonic conseguiu a proeza de inserir a música clássica na pauta de tecnologia. Isso se intensificou em 27 de março passado, quando finalmente veio ao mundo o fruto dessa compra: o Apple Music Classical, um spin-off do Apple Music só para o gênero.

Para quem está dentro do 1%, como eu, o coração fica quentinho de receber tanta atenção de uma das maiores empresas do mundo. Eu estou há 35 anos no universo da música clássica e não me lembro de nada sequer parecido.

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Para quem está nos 99%, a sensação é de mistério: por que, afinal, um app exclusivo?

Estou usando o Apple Music Classical há pouco mais de uma semana. Segura aí que vou dizer o que estou achando dele… mas, antes, você vai entender por que é mesmo necessário um app separado.

Música clássica é diferente

Não é que ela soe diferente (embora isso também seja verdade muitas vezes). É que ela tem uma estrutura diferente. Em vez de discorrer longamente sobre isso, vou mostrar aqui duas imagens e sair correndo:

Enquanto em “The Beatles (The White Album)”, à esquerda, só há os nomes das 30 canções e o crédito único para os The Beatles, no álbum de música clássica, à direita, há “1 trilhão” de informações. O disco contém somente duas obras, de dois compositores diferentes. Elas são divididas em três partes cada e são tocadas por um pianista acompanhado por uma orquestra, que por sua vez é liderada por um regente. Ou seja, há muitos créditos: compositor, solista, orquestra e regente.

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Se você apertar o olho, vai reparar que as duas obras do disco acima têm o mesmo compridíssimo nome (“Concerto para piano e orquestra em lá menor”). Pois é. Os títulos das faixas (as partes das obras) também são bem parecidos entre si (tudo é meio “Allegro” alguma coisa). Ou seja, não só há muito mais informação, como elas também são mais confusas.

Agora dá uma olhada na carinha da primeira versão do iTunes, que a Apple lançou em 2001 e que todos reputam como a fundação da música digital:

Como você faria para colocar a informação do álbum clássico lá de cima (nomes bem compridos, um monte de créditos, obras que ocupam várias faixas) nessa interface de planilha, tendo à disposição somente as colunas “Song”, “Artist” e “Album”? Simplesmente não tem jeito.

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A estrutura do iTunes se manteve quando surgiu o streaming — se você espiar a primeira interface do Spotify, de 2006, vai se deparar com a mesma carinha de tabela. A estrutura pobre em metadados está aí até hoje. O Apple Music é de 2015 e ainda carrega várias heranças do velho iTunes, por exemplo.

Convencido? O problema é tão real que surgiram várias plataformas dedicadas à música clássica: Idagio, Vialma, Presto, Classical Archives e a própria Primephonic, adquirida pela Apple.

E agora, o Apple Music Classical. Vamos a ele, finalmente!

Três objetivos, dois públicos

Quando você abre o Apple Music Classical, a primeira coisa que salta aos olhos não é a organização ou a qualidade dos dados, mas a quantidade de conteúdo que a Apple está produzindo para o novo aplicativo. São podcasts — contei pelo menos dois, ambos em inglês: “The Story of Classical” (uma espécie de curso rápido de história da música) e “Track by Track” (basicamente making ofs de discos) —, playlists (dezenas, se não centenas), muitas listas de curadoria (lançamentos, escolhas editoriais, seletas de todos os tipos) e textos (sobre compositores, obras, álbuns e até instrumentos).

Vale reforçar que todo o conteúdo em texto do Classical está disponível em português do Brasil, inclusive os metadados — um trabalho hercúleo! Os podcasts, não. A tradução é ok, com eventuais falhas engraçadas — por exemplo, “key” (tonalidade) virou “chave”.

É evidente que a parte editorial é o maior esforço do Apple Music Classical. O objetivo de tanto conteúdo é a formação de público — todos esses podcasts, textos e playlists mastigadas estão lá para ajudar a conquistar novos ouvintes e, quem sabe, aumentar o famigerado público de 1%.

Tenho muitas ressalvas a respeito da qualidade dessa montoeira de conteúdo. Os textos, por exemplo, enfocam informações de relevância muito questionável. As playlists criadas por músicos famosos são ruins (o crítico David Hurwitz as apelidou de “loucos administrando o hospício”) e todo o esforço de curadoria traz só faixas isoladas, não obras completas. Mas tudo bem — a Apple não fez nada disso para gente como Hurwitz e, admito, eu mesmo. Fez para os 99%.

Para o 1%, a Apple está entregando os metadados, que não foram negligenciados. Eles vieram praticamente prontos do Primephonic e são bem completos. Gravações trazem todos os créditos, às vezes até demais (produtores, engenheiros de som, etc.). Esse é o segundo objetivo.

O terceiro objetivo do Apple Music Classical é justamente a organização dessa informação: a interface para o usuário. É justamente o calcanhar de Aquiles do aplicativo; seus problemas de UX acabaram por esconder um conteúdo tão rico.

Metadados sim, bagunça também

Somente conteúdo e metadados não exigiriam um aplicativo exclusivo. Isso tudo poderia ser resolvido dentro do Apple Music regular. A existência de um spin-off se justifica por um layout novo que apresenta os tais metadados simultaneamente de maneira fácil (para o público novo) e adequada (para os aficionados). Bom, a interface do Apple Music Classical é mesmo diferente do Apple Music geral… mas não tanto assim.

Exemplifico comparando os créditos de uma mesma gravação nos dois aplicativos e no encarte do disco físico — aliás, o Apple Music Classical não disponibiliza os encartes, extremamente importantes para música clássica. Todos os seus concorrentes trazem encartes e o próprio Primephonic trazia. Espero que seja somente uma questão de tempo.

O Apple Music Classical reproduz a estrutura hierárquica obra-movimentos (repare que o Apple Music repete o nome da sinfonia em todas as faixas) e dá espaço suficiente para os títulos compridíssimos (que no Apple Music acabam sendo todos cortados). Os créditos estão nos dois aplicativos, tanto no álbum quanto na faixa, mas no Apple Music eles são cortados. A novidade está numa lista complementar, abaixo das faixas, que explica o papel de cada músico (algo fundamental).

A melhoria é bem-vinda, mas… o layout ainda é muito confuso. Por que os créditos aparecem em todas as faixas? Por que o compositor aparece no crédito da gravação, junto aos intérpretes? Por que a ordem dos músicos é aleatória?

Dá uma olhada, abaixo, no encarte dessa mesma gravação. É muito mais fácil de ler. Compositor no alto, depois título da obra, os movimentos e os intérpretes (só uma vez, na ordem lógica, com seus devidos papéis). Por que a Apple não segue o que a indústria fonográfica faz há quase 100 anos?

Busca e navegação

Música clássica tem dois níveis de busca. Você pode buscar por compositor e obra — e daí se deparar com dezenas de gravações diferentes da mesma música — ou especificar compositor, obra e intérprete. Por algum motivo, buscas de música clássica em todos os serviços de streaming voltam resultados absolutamente incompreensíveis — inclusive o Apple Music. O buscador do Apple Music Classical é infinitamente melhor, mas ainda carrega algumas esquisitices do seu irmão.

Exemplo: buscar por “Mahler 2” obviamente significa “traga gravações da Sinfonia no. 2 de Mahler”. O Apple Music original traz coisas aleatórias (Bach, Rachmaninoff e outras sinfonias de Mahler) e nenhuma gravação da obra pedida. A coisa toda é muito melhor no Apple Music Classical — as gravações retornadas são da sinfonia certa, ufa! Mas o primeiro resultado é a Quinta Sinfonia. Ué? Aparecem também a Terceira e a Oitava Sinfonias. Não entendi o motivo.

Buscar por uma gravação específica — por exemplo, por um dos registros de Leonard Bernstein regendo a Segunda de Mahler — volta os resultados esperados, mais um ou outro intruso (de novo a Quinta Sinfonia)!

Um problema com a busca é que ela só retorna obras, faixas e álbuns. Não traz gravações (os conjuntos de faixas que formam, juntas, o registro de uma obra). A busca por uma gravação específica (por exemplo, da Quinta Sinfonia de Sibelius) obriga o usuário a dar passos extras: entrar no álbum, ignorar o botão grande de play, descer para achar a sinfonia (no caso, é a segunda obra do disco) e pressionar a sua primeira faixa para tocar.

Outro jeito de encontrar música é por meio da navegação. Navegar em listas não é um método que faça sentido para outros gêneros de música, mas para música clássica faz: uma lista de compositores, depois uma de obras, depois de gravações. O Apple Music Classical implementa exatamente isso. A navegação é simples, mas o critério de ordenação é obscuro. Por exemplo, “popularidade”. Mas isso seria segundo o quê? Número de discos? Toques no app? Decisão editorial?

Ao tocar em um compositor, abre-se uma lista muito curta (somente três itens) de obras “populares”, mais um sem número de intervenções editoriais: playlist essenciais, biografia, últimos álbuns e compositores relacionados — por quem? Quais são os critérios? As listas frequentemente incluem nomes obscuros, como um certo Auguste Franchomme de que não tenho notícia e que seria, teoricamente, parecido com Chopin. Quem é essa pessoa?

O usuário que quiser sair do conteúdo editorializado e listar as obras dos compositores vai se deparar com uma bagunça, porque a ordenação padrão é por popularidade (de novo, seja lá o que isso signifique). A lista única mistura música para piano, obras para orquestra, ópera, balé, música vocal… quer dizer, salada mista!

O ícone no canto superior direito oferece, ainda: uma ordenação alfabética que piora tudo, uma ordenação por número de catálogo (que faz sentido para quem deseja uma visão cronológica do compositor) e outra por tonalidade, que não consigo ver ninguém além de musicólogos adotando. Mas a reordenação mantém a mistureba. Quem quiser ver as obras separadas por gêneros (orquestral, câmara, piano, etc.) encontra, no mesmo ícone superior, a opção de filtro. Por fim, há uma busca que funciona bem (inclusive se você digitar tudo errado) cujos resultados, porém, são desordenados — mesmo que você tenha optado por algum critério na lista principal.

Montando sua coleção

Plataformas de streaming são desastrosas para a montagem de playlists de músicas clássicas por uma razão simples: playlists são orientadas para faixas e desconhecem o conceito de obra multifaixa. Quando você adiciona um álbum inteiro a uma playlist, o que acontece na verdade é a adição de dezenas de faixas independentes, que depois podem ser reordenadas ou removidas à vontade.

Faz muito sentido em todos os outros gêneros de música, mas não em música clássica. Ninguém deveria querer ouvir os movimentos da Quinta Sinfonia de Beethoven em ordem trocada, faltando um pedaço ou cada movimento com um intérprete diferente. Simplesmente não faz sentido.

O Apple Music Classical não resolve nada disso. Você até pode incluir uma gravação completa em uma playlist, mas suas partes serão faixas como outras quaisquer — desconfio que seja assim para manter a compatibilidade com o Apple Music, já que playlists criadas no Classical também aparecem no app irmão.

Você só consegue adicionar gravações a playlists na tela da gravação. O problema é que a tela da gravação não é acessível na tela do álbum, a mais comum. Ou você faz a navegação via compositor (desde o início) ou entra num caminho muito tortuoso álbum » obra » busca » gravação.

O Apple Music Classical é compatível com a biblioteca do Apple Music, que contém tanto os álbuns que você favorita quanto os que você comprou na iTunes. Além desse catálogo padrão, o Classical oferece a oportunidade de favoritar gravações, obras e compositores.

A utilidade desses favoritos, por ora, parece ser a possibilidade de encontrar o que você gosta de um jeito mais rápido, porque o aplicativo não tem nenhum recurso de sugestão automatizada ou playlist “feita para você”.

“Grande riqueza, e esperança ainda maior”

O advento do Apple Music Classical é um carinho que o mundo restrito e pequenino da música clássica não recebe há muitas décadas. A Apple tem recursos, consumidores e relevância na “conversa” pública para revolucionar o setor. Se ela conseguir ampliar o alcance da música clássica, fazendo os proverbiais 1% virarem 1,5% ou 2% em 10 ou 20 anos, as consequências serão profundamente transformadoras.

O aplicativo em si ainda está longe de ser perfeito. Ele precisa ser ajustado de várias maneiras e hoje, do jeito que foi lançado, certamente é pior que alguns dos seus concorrentes. Mas a Apple tem poder de fogo de sobra para corrigir tudo isso, tanto em termos de usabilidade quanto em termos editoriais.

Aficionados, como eu, certamente não vão adotar o Apple Music Classical. Para quem não se importa em pagar uma mensalidade extra, o Idagio é uma opção melhor, por exemplo. Eu obviamente prefiro o jeitinho dos meus próprios apps baseados no Apple Music e no Spotify, o Concertino e o Concertmaster. Mas, por suas credenciais naturais e pela divulgação espontânea que tem recebido, seguramente o Apple Music Classical vai ser o maior serviço da categoria em bem pouco tempo.

São boas notícias. Aguardemos o futuro! 🎻

O Apple Music Classical é um app de streaming de música criado para oferecer uma experiência de áudio que amantes de música clássica merecem. Com o Apple Music Classical, quem assina o Apple Music (R$11,90/mês na assinatura Universitária, R$21,90/mês na Individual e R$34,90/mês na Familiar) pode encontrar com facilidade qualquer gravação no maior catálogo de música clássica do mundo (5 milhões de faixas) com a melhor qualidade sonora disponível (áudio Lossless de até 24 bits/192 kHz), incluindo Áudio Espacial imersivo — tudo isso com busca e interface desenvolvidas para músicas clássicas.


Ícone do app Apple Music Classical
Apple Music Classical de Apple
Compatível com iPadsCompatível com iPhones
Versão 1.3 (20.2 MB)
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