Conforme temos acompanhado nos últimos dias, a importação dos Apple Watches Series 9 e Ultra 2 foi proibida nos Estados Unidos devido a uma acusação de infração de patentes relativas à tecnologia de medição de oxigenação do sangue. A decisão da Comissão de Comércio Internacional dos EUA (International Trade Commission, ou ITC) também causou uma proibição nas vendas dos relógios no país.
As medidas foram motivadas por uma alegação da empresa de tecnologia de monitoramento médico Masimo de que a Apple “roubou” alguns dos seus funcionários, bem como a sua tecnologia de oximetria de pulso para que o recurso fosse integrado ao Apple Watch. Tudo isso pode ter começado, porém, muito tempo atrás, conforme revelado hoje pela Bloomberg.
Essa saga, de acordo com o veículo, teve início com um email de um engenheiro brasileiro, Marcelo Lamego, enviado para ninguém menos que Tim Cook, CEO1Chief executive officer, ou diretor executivo. da Apple, em 2013. Ele ressaltou a sua experiência com dispositivos médicos e propôs o desenvolvimento de tecnologias que tornariam a Maçã líder do mercado médico, fitness e de bem-estar.
Lamego — que tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Stanford — foi contratado em 2014 pela gigante de Cupertino, onde passou apenas 7 meses. Antes disso, ele foi o diretor técnico da Cercacor Laboratories, que é uma empresa-irmã da… Masimo! Ele inclusive havia trabalhado nesta, onde ingressou em 2003 como pesquisador, até ir para a outra companhia, em 2006.
E este é o cerne das acusações da Masimo contra a Apple. Antes mesmo do email e da contratação de Lamego, ocorreu um encontro entre as duas empresas em 2013 para, em tese, a realização de um acordo. A companhia de tecnologia médica inclusive já processou a Maçã em 2020, afirmando que a reunião foi usada para obter informações sobre a tecnologia da Masimo e facilitar a contratação de funcionários. Essas alegações não foram aceitas pelo juiz daquele caso.
De todo modo, segundo a Bloomberg, a Apple havia convidado Lamego para trabalhar na companhia cerca de um ano antes do email; o engenheiro, na ocasião, teria recusado o convite. Para os advogados da Masimo, o que o fez mudar de ideia foi o fato de o CEO da empresa, Joe Kiani, não tê-lo promovido a diretor técnico da Masimo, bem como da Cercacor. Além dele, foram contratados pela Maçã cerca de 20 funcionários da empresa.
Após sair da Maçã, Lamego fundou a sua própria empresa, a True Wearables, onde ele está até hoje. Após lançar um dispositivo de medição da oxigenação do sangue em 2016, a Masimo processou essa companhia e uma ordem judicial proibiu a venda do produto.
Versões conflitantes
Para a Masimo, Lamego levou a sua tecnologia de monitoramento não invasivo da oxigenação do sangue para a Apple. Os advogados da empresa ressaltaram o fato de o engenheiro não ter tido contato com esse tema antes, tendo aprendido sobre esse campo na Cercacor e, então, migrado para a Maçã.
Assim, ele teria passado apenas o tempo necessário na gigante de Cupertino para concretizar a “espionagem industrial”. Durante o tempo em que trabalhou na Apple, o engenheiro de fato registrou com a Maçã uma série de patentes relativas a sensores e algoritmos para determinar o nível de oxigênio no sangue de uma pessoa.
O executivo da Apple Steve Hotelling, porém, deu uma versão diferente em um depoimento no primeiro processo da Masimo contra a Maçã. Segundo ele, o motivo de Lamego ter passado tão pouco tempo na empresa foi o comportamento do engenheiro, que discutia com superiores, pedia orçamentos multimilionários e queria contratar os seus próprios engenheiros sem precisar da aprovação da empresa. Ele, então, não teria se adequado à companhia.
O primeiro Apple Watch, lançado em 2014, não conta com o sensor de oxigenação em disputa. Essa tecnologia só foi integrada aos relógios inteligentes da Maçã com o Apple Watch Series 6, o que motivou a famigerada reclamação da Masimo à ITC, que terminou com o banimento das importações e vendas do Watch pela Comissão.
Desse modo, enquanto a Masimo tenta demonstrar que há um nexo de causalidade entre a ida de Lamego para a Apple e o desenvolvimento do medidor de oxigenação do sangue do Watch, a Maçã busca defender o contrário. No processo anterior, por exemplo, um engenheiro da gigante de Cupertino disse que a criação desse componente começou apenas no final de 2014, após a saída de Lamego da empresa.
Quem ganhou esse processo em específico foi a Apple, mesmo com o email enviado por Lamego sendo usado como prova pela Masimo. O juiz da causa entendeu que contratar empregados de outras companhias, inclusive concorrentes, não é necessariamente errado e não foi convencido da hipótese de roubo de segredos industriais.
O que a Masimo quer
Um fator interessante no que tange à Masimo é que uma parte considerável de sua receita nas últimas duas décadas advém justamente de processos contra concorrentes que desenvolvem dispositivos de uso médico. A empresa também licencia a sua tecnologia para várias outras companhias, e muitas dessas ações viraram acordos do tipo.
Uma solução que envolvesse um acordo entre ela e a Apple, que inclui um arranjo de licenciamento da patente, agradaria a Masimo, que poderia exibir a gigante de Cupertino na lista de empresas que licenciam a sua tecnologia. Estão ocorrendo sessões de mediação entre as companhias — e, que sabe, elas poderão chegar a essa resolução.
Todavia, as diferenças entre os dois lados são bastante notáveis. Em 2022, por exemplo, a Masimo lançou um smartwatch, o W1. O produto foi motivo de um processo da Apple contra a empresa sob a acusação de copiar o design do Apple Watch. A Maçã também alegou que processo da Masimo seria motivado por tirar concorrentes do mercado.
O CEO da empresa de produtos médicos disse à Bloomberg que a gigante de Cupertino “não precisava ter roubado” funcionários, mas que poderia ter trabalhado em parceria. Ele já foi chamado de “Steve Jobs da saúde” por executivos da Apple; as invenções de Kiani permitiram a medição da oxigenação em movimento ou em pessoas com pulso fraco e são usadas em mais de 200 milhões de pacientes por ano, a maioria em hospitais.
Ele é próximo do presidente dos EUA, Joe Biden, e queria inicialmente que o banimento da ITC fosse realizado no verão do hemisfério norte, o que faria a Apple atrasar o lançamento dos próximos Apple Watches. O CEO da Masimo disse também não acreditar que as mudanças de software planejadas pela Maçã sejam suficientes para reverter a medida.
É raro uma empresa muito menor que a Apple, como ressaltado pela Bloomberg, conseguir tração ao sustentar acusações de roubo de tecnologia e de pessoal contra a Maçã. Kiani disse, ainda, que quer um pedido de desculpas da gigante de Cupertino; ele já pediu o pagamento de US$3 bilhões em danos anteriormente, embora não tenha falado em valores no caso atual.
Não sabemos exatamente qual será o futuro dessa disputa envolvendo patentes relativas ao oxímetro dos Apple Watches. Revelar esses meandros — inclusive a participação de um engenheiro brasileiro — ajuda, porém, a compreender as motivações de ambos os lados.
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Notas de rodapé
- 1Chief executive officer, ou diretor executivo.
