Vamos deixar isso muito bem estabelecido desde a primeira linha deste artigo: Noel Fielding é um tesouro da comédia.
Muito conhecido no seu país natal, o Reino Unido, mas nem tanto assim no resto do mundo, Fielding é um daqueles raros comediantes que consegue ser provocativo e subversivo sem nunca apelar para a ofensa ou para a escatologia. Representante notável da nova (ou já nem tão nova assim) geração do humor britânico, seu estilo é surreal, meio sombrio, meio macabro, mas sempre muito engraçado — e isso desde os dias de The Mighty Boosh, seu grupo de comédia (que ele liderou junto com seu parceiro Julian Barratt) que gerou inúmeras peças, apresentações, séries de TV e programas de rádio.
Tendo isso em mente, é bastante irônico que boa parte das pessoas fora do Reino Unido, incluindo este que vos escreve, tenha conhecido Fielding por conta do indefectível “Great British Bake-Off”, reality show de confeitaria do qual o humorista é um dos apresentadores desde 2017. Não me entendam errado: o “Bake-Off” é uma delícia de assistir, mas, convenhamos, não é exatamente o palco ideal para que Fielding — ainda que extremamente charmoso, como de costume — exiba todos os seus talentos para a comédia.
Considerando tudo isso, era de se esperar que os admiradores de Fielding se animassem com o anúncio de “The Completely Made-Up Adventures of Dick Turpin” (ou, em português, “As Aventuras Inventadas do Dick Turpin”): uma nova série de comédia estrelando o comediante e, enfim, lhe dando o espaço necessário para exercer sua privilegiada veia cômica exatamente no estilo que tanto lhe caracteriza — um tanto quanto non-sense, um tanto quanto inesperado e sempre caminhando a corda bamba entre a malícia e o bom coração.
A boa notícia é que a série, que chegou ao Apple TV+ na última sexta-feira (1º/3) com seus dois primeiros episódios já disponíveis, realmente dá a Fielding um enorme playground para que ele deite e role como o personagem titular da narrativa. Já a parte não tão boa assim é que, bom, uma obra audiovisual vai além do seu protagonista — e, em quase todos os demais aspectos, “Dick Turpin” acaba aquém do seu potencial.
Temos aqui uma história baseada em uma pessoa real: Dick Turpin foi um lendário fora-da-lei britânico do século XVIII, conhecido por seus assaltos em estradas e pelos roubos de cavalos. Entretanto, a série criada por Claire Downes, Ian Jarvis e Stuart Lane toma diversas liberdades poéticas — bom, basta dar uma olhada no título da produção — em relação ao seu biografado: por aqui, Turpin é um bandoleiro charmoso e divertido que, por uma série de percalços, se vê obrigado a reunir uma gangue de foras-da-lei para assaltar estradas na Inglaterra. Para isso, entretanto, ele terá de superar alguns empecilhos, como o general corrupto Jonathan Wild (Hugh Bonneville)… e o fato de ele próprio, Turpin, ser bonzinho e estiloso demais para se tornar um implacável assaltante de estradas.
A descrição acima já mostra a linhagem de “Dick Turpin”, que vem desde os filmes de Mel Brooks (como “O Jovem Frankenstein”) até as histórias recentes de Taika Waititi (como “O Que Fazemos nas Sombras” e a recém-cancelada “Our Flag Means Death”) — basicamente, narrativas que extraem seu humor da estranheza de lidar com situações e personagens (como monstros, vampiros ou piratas) que, no geral, não são associados a risadas. Adicione aqui uma boa dose de anacronismo intencional (na trilha sonora, nas falas dos personagens, nos costumes) e você tem uma receita que não é exatamente nova, mas que, quando feita com cuidado, dá certo.
Nesse sentido, a escolha de Fielding para protagonizar a série é perfeita: seu carisma combina perfeitamente com o estilo glamouroso, ligeiramente gótico, de Dick Turpin, e as tiradas absurdistas do humorista são os momentos em que a produção brilha com mais força. De fato, Fielding — mesmo sem nenhum crédito de criador, showrunner ou roteirista, atuando atrás das câmeras apenas como produtor executivo — parece ser uma das principais influências criativas da série, como se tudo tivesse sido planejado ao seu redor. Basta ver a quantidade de participações especiais, algumas delas não anunciadas, de antigos parceiros e amigos que marcaram a carreira do comediante.
O problema é que, como eu disse acima, uma série não é apenas o seu protagonista, e sempre que “Dick Turpin” precisa de algo além de Dick Turpin, ela simplesmente não brilha como poderia. Do elenco coadjuvante, Hugh Bonneville (abandonando seus costumeiros papéis de bom moço já vistos em “Downton Abbey” e nos filmes de “Paddington”) é o que tenta fazer algo mais elaborado com o seu papel de antagonista: Jonathan Wild é repulsivo de um jeito deliciosamente engraçado, mas o ator simplesmente não tem tempo de tela o suficiente para desenvolver o personagem — culpa do roteiro apressado, excessivamente episódico, que nunca permite que situações tenham o impacto ou o peso emocional necessário.
As principais vítimas da escrita da série, aliás, são os parceiros de crime de Dick Turpin, como Moose (Marc Wootton), Honesty (Duayne Boachie) e Nell (Ellie White), que até conseguem estabelecer uma dinâmica de camaradagem verossímil, mas passam a impressão de nunca transcender a imagem de acessórios, postos ali para dinamizar e avançar as tramas. Já que estamos fortes nas comparações, basta lembrar que o sucesso de “Our Flag Means Death” esteve justamente nas fortes conexões emocionais feitas entre os personagens, explorando as origens e motivações de cada um deles e, com isso, fazendo com que nos importássemos com o grupo, algo que não ocorre por aqui.
Visualmente, “Dick Turpin” se aproveita do orçamento (possivelmente) mais generoso concedido pelos cofres abastados do Apple TV+, mas em nenhum momento tenta esconder que é uma série, financeiramente falando, mais modesta — os sets, bem trabalhados, sempre têm uma escala menor do que poderiam, e todo o dinheiro de figurino parece ter sido gasto nos trajes do protagonista (que, de fato, são fenomenais). A direção é correta, sem virtuosismos ou truques que distraiam o espectador, preferindo sempre manter suas atenções na performance dos atores e no desfile de piadas (algumas afiadas, outras nem tanto) concatenadas pelo roteiro.
O que sobra, então? Sobra, como vocês provavelmente já perceberam, uma performance riquíssima de Noel Fielding, e não muito mais. Ou seja: dê uma chance a “Dick Turpin” se você é fã do humorista inglês ou se ainda está chorando pelo cancelamento de “Our Flag Means Death” (que, de fato, tem tom e estilo muito parecidos). De resto, talvez seja melhor reassistir aos filmes antigos de Mel Brooks, mesmo.
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