Na última quarta-feira (19/6), o presidente Lula anunciou um investimento de R$1,6 bilhão no setor audiovisual para produção de filmes e séries nacionais.
Durante o evento, uma fala em específico acabou, por seu próprio teor mais assertivo, eclipsando o resto dos anúncios:
Artista, cinema e novela não são para ensinar putaria, são para ensinar cultura, contar história. Não é para dizerem que nós queremos ensinar coisas erradas às crianças. Queremos fazer arte. Quem não quiser entender o que é arte, dane-se.
Que fique claro: essa fala é um acinte. É um tapa na cara de qualquer pessoa que confiou seu voto em Lula como uma forma de — entre tantas outras coisas — tentar superar o obscurantismo e o falso moralismo medieval dos anos anteriores. Ao contrário do que diz o presidente, a arte não pode nem deve educar ninguém nem servir para nada, porque ela já é por si só a serventia: é a capacidade inalienável de expressar as profundezas — muitas vezes as mais complicadas, feias e sujas — do ser humano 1A conversa é diferente, claro, quando se fala de arte para crianças, que deve ter um direcionamento e um cuidado especiais. Mas a fala de Lula foi generalista..
Mas não é dessa fala, pensada para agradar a uma parcela conservadora da sociedade que obviamente não está com Lula, que pretendo tratar. É lamentável que, num evento com anúncios tão importantes — como a assinatura do decreto que regulamenta a cota de tela em salas de cinema e o próprio investimento bilionário no setor audiovisual —, tal declaração tenha tirado a atenção de assuntos tão importantes. Não: o que eu pretendo discutir aqui é esta outra frase dita pelo presidente.
Eu acho que a gente tem condições de fazer uma regulamentação para que esse país seja livre, soberano, dono do seu nariz, dono da sua arte e do seu futuro.
A declaração era relacionada, sim, às plataformas de streaming. E ela não surge num vácuo: a discussão sobre regulamentar os serviços de filmes/séries sob demanda no Brasil não vem de hoje e está baseada principalmente em dois projetos de lei que já circulam no Congresso Nacional há alguns anos.
A saber:
- O PL 2331/2022, que estende às plataformas de streaming a cobrança do Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional). A taxa é de 1,5% da receita para serviços com faturamento entre R$4,8 milhões e R$96 milhões, ou 3% da receita para plataformas com faturamento anual acima de R$96 milhões. Plataformas com faturamento abaixo de R$4,8 milhões ficam isentas. O texto do PL já foi aprovado pelo Senado e segue agora para a Câmara dos Deputados.
- O PL 8889/2017, que obriga as plataformas de streaming que operam no Brasil a destinar pelo menos 10% do seu faturamento bruto em produções nacionais. Deste valor, pelo menos 50% devem ser investidos em conteúdos produzidos por produtoras brasileiras independentes, pelo menos 30% devem ser investidos em conteúdos produzidos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e pelo menos 10% devem ser investidos em conteúdo classificado como “identitário” — isto é, com temas relacionados aos direitos de mulheres, pessoas negras e indígenas, pessoas com deficiências, comunidades tradicionais ou grupos de vulnerabilidade social. Esses três recortes podem ser cumulativos.
Tais propostas, vale notar, são muito mais leves do que aquelas aplicadas na maioria dos países europeus — a França, por exemplo, obriga que as plataformas de streaming invistam entre 20% e 25% da sua receita obtida no país em projetos locais. A Espanha, por sua vez, tem uma cota de tela de 30% para filmes e séries produzidos na Europa, sendo no mínimo 9% deles em língua espanhola.
E não há nenhum bicho de sete cabeças nisso: qualquer política econômica minimamente responsável aplica, em todos os setores de produção, regras para incentivar o desenvolvimento da indústria nacional e a competitividade. Existem graus maiores e menores de incentivo à produção local e de taxação do produto estrangeiro, mas sempre com alguma regulamentação — mas, por algum motivo, isso só é motivo de celeuma quando se trata da indústria audiovisual, um setor que emprega (em dados de 2019) 126 mil pessoas no Brasil e injeta R$24,5 bilhões na economia nacional.
E como fica o Apple TV+ nessa história?
Uma coisa é certa: caso os projetos de lei acima sejam aprovados da forma como se caracterizam hoje — especialmente o PL 8889/2017 —, a Apple terá muito trabalho a fazer no Brasil no que se refere ao seu streaming.
Em linha com o modus operandi geral da Apple em relação ao país, a plataforma da Maçã ainda não tem absolutamente nada em termos de produções nacionais. Quem resolveu acompanhar os rumores de que a empresa estaria considerando investimentos para lançar séries e filmes brasileiros, surgidos há quase dois anos, está a ver navios até agora.
E é aí que a coisa complica para os prospectos de um Apple TV+ um pouco mais brasileiro. De um modo geral, fica cada vez mais evidente que o foco da Maçã em todas as suas operações está, de fato, nos Estados Unidos — basta ver lançamentos recentes, como o do Vision Pro e o anúncio da Apple Intelligence, para entender que a prioridade absoluta da empresa é a sua terra natal. Só depois vêm mercados importantes como a Europa, a China, o Canadá e o Japão. E o Brasil está num distante terceiro escalão.
No caso do Apple TV+, especificamente, nota-se que as incursões da empresa em produções fora dos EUA são raras e inconstantes. Temos exemplos de séries feitas na França, na Coreia do Sul e no México (três países com um investimento audiovisual muito superior ao brasileiro), mas nada muito além disso.
A pergunta que fica, portanto, é: será que o streaming da Maçã tem público, receita e repercussão suficientes no Brasil para que a empresa tenha algum interesse em mudar a situação atual? Porque se a resposta for não, dependendo de como os projetos de lei venham a ser aprovados, pode ser que Cupertino simplesmente puxe o carro de bois para tirar o Apple TV+ do Brasil.
Essa é uma hipótese longínqua, claro, mas ao mesmo tempo deveras consternadora. Afinal de contas, a regulamentação nacional dos streamings — por mais que represente algum obstáculo operacional para uma empresa tão pouco focada no Brasil — também oferece uma oportunidade única para que o Apple TV+ expanda a sua base de usuários por aqui. É uma conta simples: ao investir em narrativas que toquem com mais proximidade o público brasileiro, a Maçã pode não apenas cumprir quaisquer exigências legais que possam vir a existir, mas também ganhar relevância cultural e aumentar sua competitividade.
Talento para isso, como sabemos, não falta.
O Apple TV+ está disponível no app Apple TV em mais de 100 países e regiões, seja em iPhones, iPads, Apple TVs, Macs, dispositivos Android, smart TVs ou online — além também estar em aparelhos como Roku, Amazon Fire TV, Chromecast com Google TV, consoles PlayStation e Xbox. O serviço custa R$21,90 por mês, com um período de teste gratuito de sete dias. Por tempo limitado, quem comprar e ativar um novo iPhone, iPad, Apple TV ou Mac ganha três meses de Apple TV+. Ele também faz parte do pacote de assinaturas da empresa, o Apple One.
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Notas de rodapé
- 1A conversa é diferente, claro, quando se fala de arte para crianças, que deve ter um direcionamento e um cuidado especiais. Mas a fala de Lula foi generalista.