Existe um filme clássico de 1962, estrelado por gigantes como Frank Sinatra e Angela Lansbury, chamado “Sob o Domínio do Mal”. A obra ganhou uma refilmagem em 2004 com outros gigantes, como Denzel Washington, Meryl Streep, Jeffrey Wright e Liev Schreiber, mas a versão de 1962 é bem superior.
Baseado em um livro homônimo, o filme conta a história de um soldado americano que é capturado por comunistas durante a Guerra da Coreia. Durante a captura, ele sofre uma lavagem cerebral que o programa para assassinar o principal candidato à presidência dos Estados Unidos, abrindo caminho para seu vice-presidente assumir a indicação ao cargo 1Tanto no livro quanto no primeiro filme, o partido-alvo da conspiração não é mencionado. Já no remake, é o partido Democrata..
Em inglês, o nome da obra é “The Manchurian Candidate”, ou “O Candidato Manchuriano”, em referência à antiga região da Manchúria, no nordeste da China. De lá para cá, esse termo se tornou uma espécie de jargão para se referir a políticos que são postos em cargos de grande importância, muitas vezes sem a experiência necessária, graças a pessoas ou grupos em busca de algum tipo de benefício, controle ou privilégio. Se o Império em “Star Wars” fosse uma democracia, Darth Vader seria o candidato manchuriano de Palpatine.

A ameaça fantasma
Assim como acontece com muitas boas obras criativas, “Sob o Domínio do Mal” pega aspectos do mundo real e os exagera para oferecer uma premissa cativante 2Alô, “Black Mirror”!. Porém, não precisamos fazer muito esforço para traçar paralelos entre a conspiração exagerada do livro e as práticas comuns (e totalmente legais) do dia a dia político, como as doações para candidaturas ou o bom e velho lobbying.
Peguemos a Apple como exemplo. De acordo com um levantamento da CNBC, a empresa de Tim Cook aumentou em 44% o dinheiro gasto com iniciativas de influência em Washington em 2022, ou seja, ainda na metade do primeiro (e provavelmente único) mandato do governo Biden. Isso foi mais do que a Meta, a Amazon, a Microsoft e o Google aumentaram em gastos com lobbying no mesmo período — apesar de, em valores absolutos, a Apple ainda ter sido a que menos gastou com isso dentre suas pares.

Já o New York Post disse recentemente que, desde que Biden assumiu a presidência, Cook e outros representantes da Apple visitaram a Casa Branca em pelo menos 87 oportunidades.
Todos esses esforços de influência têm um motivo: regulação. Ou melhor, a tentativa de evitá-la. Via de regra, a filosofia democrata vê a regulação de mercados como um exercício contínuo de ajustes para favorecer a concorrência justa e coibir abusos ou excessos de empresas dominantes sobre o resto do mercado.

Por isso, não é uma coincidência que os últimos quatro anos tenham sido repletos de investigações promovidas por órgãos governamentais, como o Departamento de Justiça dos EUA (DoJ, na sigla em inglês), e até mesmo por órgãos independentes do governo, como a FTC 3Federal Trade Commission, ou Comissão Federal de Comércio dos EUA., a FCC 4Federal Communications Commission, ou Comissão Federal de Comunicações dos EUA. e a SEC 5Securities and Exchange Commission, ou Comissão de Títulos e Câmbio dos EUA.. Da mesma forma, definitivamente não é uma coincidência que a Apple (e não só ela) tenha aumentado bastante os esforços para combater essa tendência nos bastidores.

Mas e os republicanos? Bem, eles veem a regulação como um ataque à liberdade dos mercados. Para eles, o mercado tem a capacidade de se regular espontaneamente graças à livre concorrência, e a interferência do governo na forma de regulação desencoraja o empreendedorismo e a inovação, além de reduzir a oportunidade de geração de empregos.
Todos esses ingredientes contribuem para uma receita explosiva no mercado de tecnologia, que vive cada vez mais intensamente a dicotomia entre ser um ambiente histórica e majoritariamente progressista, mas com instintos conservadores de autopreservação fiscal. Mais uma vez, tomemos a Apple como exemplo. Não é exatamente controverso afirmar que ela tem uma atitude mais progressista? Ainda assim, a fim de proteger os próprios interesses, ela age de uma forma mais próxima à de republicanos quando combate as ameaças regulatórias em Washington.

A questão é que a Apple tende a ser uma rara exceção relativamente comedida em um ambiente cada vez mais barulhento. E é aqui que o assunto passa a fica mais carregado.
O despertar da força
Ben Horowitz, Bill Ackman, Cameron Winklevoss, Chamath Palihapitiya, David Sacks, Doug Leone, Elon Musk, Eoghan McCabe, Jacob Helberg, Joe Lonsdale, Ken Howery, Kyle Samani, Marc Andreessen, Palmer Luckey, Peter Thiel, Shaun Maguire, Trevor Traina, Tushar Jain e Tyler Winklevoss.
O que todos esses homens têm em comum? Eles são empreendedores, donos de fundos de investimento e de capital de risco, além de bilionários que atuam há décadas no setor de tecnologia.
Andreessen, por exemplo, criou o primeiro navegador web e, atualmente, comanda a famosa firma de investimentos a16z junto a Horowitz. Já Sacks, Howery, Musk e Thiel (guarde esse nome) fundaram o PayPal, enquanto os irmãos Winklevoss se envolveram no caótico início do Facebook e hoje atuam no mercado de criptomoedas. Leone e Maguire por sua vez, são crias da Sequoia Capital, um dos maiores fundos de investimento do mundo. Deu para entender a ideia, certo?

Há ainda um segundo aspecto sob o qual todos são semelhantes: assim como a Apple, eles detestam regulação. Quanto maior o limite do Pix de suas contas bancárias, mais vocais eles são contra qualquer ameaça de mudança nas regras dos jogos que dominam há décadas. Além disso, eles fazem parte da elite de tecnolibertários lamuriosos que, quem acompanha os bastidores do mercado de tecnologia poderia listar de cabeça, na íntegra.
Por isso, não é surpresa que, especialmente nos últimos anos, todos os nomes acima tenham se aproximado do lado republicano da força, o que nos traz à terceira semelhança: todos manifestaram apoio ou simpatia à candidatura de Donald Trump à presidência dos EUA nos últimos dias, especialmente após a confirmação da compra escolha do senador J.D. Vance, de Ohio, como seu vice.
Uma nova esperança
Vance e Thiel se conheceram quando Thiel deu uma palestra na Universidade de Yale em 2011, onde Vance cursava Direito. Com o tempo, os dois foram se aproximando. Em 2013, quando Vance se formou e se mudou para o Vale do Silício, Thiel lhe conseguiu um emprego como um favor na Circuit Therapeutics. Em 2016, quando Vance escreveu um livro, Thiel escreveu a orelha. No mesmo ano, Vance foi contratado pela Mithril Capital, empresa de capital de risco cofundada por Thiel. Àquela altura, Thiel já não trabalhava mais na empresa, porém pediu a contratação de Vance, novamente como um favor.
Já em 2020, quando Vance fundou a Narya Capital, sua própria empresa de capital de risco, Thiel atuou como conselheiro e ajudou a levantar US$120 milhões de capital inicial. Na época, graças à aproximação que Thiel havia promovido entre Vance e os líderes do Vale do Silício, executivos como Andreessen e Eric Schmidt, ex-CEO do Google, também contribuíram para a vaquinha. Dente os principais investimentos da Narya, figurou a plataforma Rumble, uma espécie de YouTube voltado ao público republicano.
Mais ou menos na mesma época, Vance passou a se interessar pro criptomoedas. Além de ter informado possuir entre US$100 e US$250 mil em crypto na plataforma Coinbase em 2022, Vance já fez múltiplas declarações afirmando que esse mercado não deve ser submetido à regras da SEC.
Em meio a tudo isso, Vance começou a se envolver com o setor político mais diretamente. Ele quase concorreu ao senado dos EUA em 2018 e, em 2021, quando decidiu se candidatar para as eleições do ano seguinte, Thiel já havia doado US$15 milhões a um fundo preliminar para a sua campanha. Vance foi eleito.
O que nos traz aos últimos meses. Ao mesmo tempo em que boa parte dos nomes da lista acima pressionavam Trump para escolher Vance como seu vice, o próprio Vance se movimentou, com direito à organização de um jantar para mais de 20 convidados dos setores de investimentos e criptomoedas, e que levantou US$12 milhões para a campanha de Trump.
Deu certo. Trump anunciou Vance como seu vice na última semana.

O acólito
A carreira de Vance pelo Vale do Silício durou apenas cinco anos, mas as consequências dessa passagem têm chances de serem mais profundas do que qualquer um poderia ter imaginado.
Caso ele se torne vice-presidente dos EUA, esse será o mais próximo que o alto clero tecnolibertário do Vale do Silício já terá estado de contar com um representante direto dos seus interesses em um cargo tão alto dentro da Casa Branca. Isso sem mencionar, é claro, a possibilidade de o próprio Vance ter de assumir a presidência dentro dos próximos quatro anos, ou a chance maior ainda de isso acontecer no futuro 6Até hoje, 15 dos 45 presidentes americanos atuaram como vice-presidentes em mandatos anteriores; 8 desses vices assumiram o cargo devido à morte do presidente..
Eu não irei tão longe quanto dizer que Vance seja o candidato manchuriano de Thiel, dada a quantidade de favores que ele deve ao executivo, mas acredito que ninguém invista dezenas ou centenas de milhões de dólares em outra pessoa sem esperar algum tipo de retorno. E não tenho dúvidas de que Thiel se sinta 100% responsável por Vance estar onde está.
Por outro lado, Vance tem alguns traços que confundem os republicanos e, especialmente, seus amigos da lista acima.
Primeiro, ele afirmou recentemente que estava “na hora de desmembrar o Google”, graças ao fato de a empresa ser “explicitamente progressista” e de ter um “controle monopolista da informação da sociedade”. Quebrar empresas geralmente é um pedido que sai da boca de democratas, e não de republicanos. Ou será que o preceito de não interferir no mercado serve apenas para empresas com lideranças conservadoras?
Já o segundo aspecto que chamou a atenção recentemente foi um elogio que Vance fez a Lina Khan, a líder da FTC indicada por Biden e que vem promovendo investigações e iniciativas regulatórias sobre a maioria das empresas de tecnologia.
Segundo Vance, Khan “é uma das poucas pessoas na administração Biden que está de fato fazendo um bom trabalho”. Ele disse isso durante um evento [PDF] promovido pela incubadora Y Combinator, em um escritório da Bloomberg, e cujo objetivo foi explorar alternativas regulatórias para o mercado de tecnologia, incluindo o desmembramento de empresas.

Além de Vance, o evento contou com palestras da própria Khan, e da senadora democrata Elizabeth Warren, figurinha carimbada em toda e qualquer iniciativa de investigação (e remediamento) de anticompetitividade que surge no Senado, especialmente quando o assunto é o setor de tecnologia.
Resumo da ópera
Tentar prever as atitudes de qualquer político com base em seu próprio histórico é sempre um exercício em futilidade. Em um passado não muito distante, Vance disse que nunca votaria em Trump, e chegou a compará-lo a Hitler. E cá estamos.
Por isso, o histórico de proximidade com o alto clero tecnolibertário do Vale do Silício não é uma garantia absoluta de que Vance irá favorecê-los incondicionalmente em um possível governo Trump, mas é o mais próximo disso que eles poderiam esperar chegar.
Seja como for, desde a confirmação de Vance como o número dois da campanha republicana, esse alto clero vem celebrando a notícia como se eles próprios tivessem sido eleitos e estivessem a caminho de ocupar o Salão Oval, ao invés de apenas terem comprado a vaga de vice-presidente, por ora.
Ainda assim, neste momento, é difícil imaginar que até mesmo os CEOs mais progressistas não estejam salivando frente à ideia de poder passar os próximos quatro anos sem a pressão regulatória dos últimos quatro. O Google por exemplo, já começou a se movimentar.
Notas de rodapé
- 1Tanto no livro quanto no primeiro filme, o partido-alvo da conspiração não é mencionado. Já no remake, é o partido Democrata.
- 2Alô, “Black Mirror”!
- 3Federal Trade Commission, ou Comissão Federal de Comércio dos EUA.
- 4Federal Communications Commission, ou Comissão Federal de Comunicações dos EUA.
- 5Securities and Exchange Commission, ou Comissão de Títulos e Câmbio dos EUA.
- 6Até hoje, 15 dos 45 presidentes americanos atuaram como vice-presidentes em mandatos anteriores; 8 desses vices assumiram o cargo devido à morte do presidente.