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Justiça

Confirmado: o Google é monopolista. E agora?

Entre 1990 e 1993, a FTC 1Federal Trade Commission, ou Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos. investigou se a Microsoft vinha abusando do seu poder de mercado para monopolizar o segmento de sistemas operacionais para PCs. No melhor estilo FTC, a investigação não deu em nada e foi arquivada após um impasse interno.

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Esse, é claro, não foi o fim da história. Ainda em 1993, o DoJ 2Department of Justice, ou Departamento de Justiça dos EUA. decidiu analisar a situação por conta própria, e concluiu que havia sim motivo para acusar a Microsoft de comportamento monopolista, já que ela estava na posição de oferecer uma vantagem injusta aos seus próprios produtos ao integrá-los ao Windows (na época, as possibilidades técnicas do desenvolvimento de terceiros para Windows eram mais limitadas).

A coisa toda se concluiu em 1994, com um acordo o qual ditou que a Microsoft não integraria mais nenhum produto seu ao Windows. Ao invés disso, ela seria permitida apenas a integrar funcionalidades novas ao sistema operacional.

Fim de papo? Finja surpresa: é claro que não. Logo no ano seguinte, a Microsoft lançou o IE 3Internet Explorer. que obviamente era integrado ao Windows e, por isso, precisou de poucos meses para assumir a vice-liderança do mercado de navegadores (com 8% de participação), atrás apenas do Netscape Navigator (que à época tinha pouco mais de 80% de participação).

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Nos anos que se sucederam, o cenário foi consistente: o IE seguiu crescendo em adoção, o Netscape Navigator foi perdendo mercado e, em 1998, o pódio se inverteu.

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A reação do DoJ foi praticamente imediata: semanas após o IE assumir a liderança, o Departamento e procuradores-gerais de múltiplos estados americanos registraram um processo acusando a Microsoft de anticompetitividade ao incluir o IE nativamente no Windows, quebrando inclusive o acordo de 1993.

Já a Microsoft se defendeu com o seguinte argumento: o IE não era um produto novo, mas sim uma funcionalidade nova do Windows Explorer. Da mesma forma que o Windows Explorer permitia navegar pelas pastas do computador, o Internet Explorer apenas habilitava essa mesma navegação na web.

Não colou. O processo se arrastou até 1999 quando, depois de incontáveis idas e vindas, a Microsoft perdeu. O tribunal determinou que a Microsoft estava agindo em desacordo com a Lei Antitruste Sherman 4Lei do ano 1890 que estabeleceu os padrões e definições de concorrência para o mercado americano. e, portanto, era um monopólio ilegal.

Contexto importante: segundo a lei americana, não é ilegal ser um monopólio. Porém, há coisas que as empresas podem fazer quando elas não são um monopólio, mas que se tornam ilegais quando ganham essa designação.

Para remediar a situação, o tribunal decidiu que a Microsoft teria que ser desmembrada em duas: uma unidade ficaria responsável apenas pelo desenvolvimento do sistema operacional, e a outra unidade ficaria responsável por desenvolver softwares.

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A coisa obviamente não acabou aí. A Microsoft entrou com recurso e, para encurtar a história, conseguiu uma vitória parcial. A decisão de desmembrá-la por monopólio ilegal foi invalidada, mas ainda assim ela precisou se comprometer a seguir uma série de regras para passar a facilitar o desenvolvimento de softwares concorrentes com seus próprios produtos no Windows, além de se submeter a uma supervisão judicial obrigatória que durou até 2011.

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Está sem sono? Esta é a parte 1 de 12 de quase 12 horas de depoimentos do Bill Gates no caso contra o DoJ.

Ao longo das últimas décadas, o processo do DoJ contra a Microsoft sempre foi tido como o exemplo mais significativo de um caso bem-sucedido do governo americano contra monopólios ilegais de empresas de tecnologia. Na última semana, isso mudou.

DoJ vs. Google

Com muitas semelhanças com o caso contra a Microsoft nos anos 1990, o DoJ (junto a 11 estados americanos) abriu em 2020 um processo acusando o Google de práticas anticompetitivas nos segmentos de buscadores, de anúncios de texto em buscadores, e de anúncios em pesquisas em geral.

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Segundo o DoJ, o Google estabelece parcerias com empresas como a Apple e a Mozilla para limitar os janelas de oportunidades para a concorrência no segmento de buscadores, e usa o enorme faturamento que isso gera em seu próprio buscador para subsidiar preços insustentáveis nas operações de anúncios, impossibilitando uma concorrência justa nesses segmentos também.

Ao longo de aproximadamente três anos, as idas e vindas desse processo incluíram depoimentos de executivos de empresas como a Apple, a Microsoft, a Mozilla, o DuckDuckGo, o Yahoo, a Neeva, a Branch, a Samsung, a Motorola, a AT&T, a T-Mobile e a Verizon. A coisa foi bastante abrangente, para dizer o mínimo.

Do lado da Apple, não faltaram declarações e informações suculentas. Eddy Cue, vice-presidente sênior de serviços da empresa, disse que não haveria dinheiro no mundo que a Microsoft poderia pagar à companhia para estabelecer o Bing como buscador padrão do Safari. “Eles poderiam nos dar a empresa inteira” e não adiantaria, segundo Cue.

O executivo também detalhou como funciona a parceria entre o Google a Apple: ao contrário do que muitos acreditam, o Google não paga um valor fixo à Apple para ser o buscador padrão do Safari, mas sim uma comissão com base no faturamento que as buscas feitas via Safari geram nas buscas no Google. Em 2021, esse repasse foi de US$18 bilhões. Em 2022, foram US$20 bilhões.

John Giannandrea, ex-Googler e atual líder de aprendizado de máquina da Maçã, afirmou que o segmento de buscadores enfrenta um problema circular: fazer algo no nível que o Google oferece atualmente é praticamente impossível do ponto de vista de custo, e por isso os investidores não consideram mais esse um mercado digno de seu rico dinheirinho de risco. Essencialmente, não há investimento porque não há oportunidade, e não há oportunidade porque não há investimento.

John Giannandrea
Foto: TechCrunch

Durante o processo, o Google tentou propor sua própria lógica Tostines para justificar a situação em que ele e a concorrência se encontram: ele não é gigante porque impede a concorrência de crescer, mas sim porque simplesmente oferece um produto tão superior, que ninguém consegue chegar perto 5Por que será?.

O juiz do caso, Amit Mehta (sobrenome divertidamente irônico para o juiz de um caso contra o Google), discordou. Na última quarta-feira (7/8), ele deu razão para duas das três acusações do DoJ:

Após considerar e avaliar cuidadosamente o depoimento das testemunhas e as evidências, o tribunal chega à seguinte conclusão: o Google é monopolista e tem agido como tal para manter seu monopólio. Ele violou a Seção 2 da Lei Antitruste Sherman.

Especificamente, o tribunal determina que (1) existem mercados de produtos relevantes para serviços de busca geral e anúncios de texto de busca geral; (2) o Google possui poder de monopólio nesses mercados; (3) os acordos de distribuição do Google são exclusivos e têm efeitos anticompetitivos; e (4) o Google não apresentou justificativas procompetitivas válidas para esses acordos.

Importantemente, o tribunal também conclui que o Google exerceu seu poder de monopólio ao cobrar preços supracompetitivos por anúncios de texto de busca geral. Essa conduta permitiu que o Google obtivesse lucros monopolistas.

[…]

O fato de que o Google faz mudanças em seu produto sem se preocupar se seus usuários irão para outros lugares é algo que só uma empresa com poder de monopólio poderia fazer.

E agora?

Como você deve ter imaginado, o Google já disse que irá recorrer da decisão. Ainda assim, o caso agora entrará na chamada Fase de Sanções, que é praticamente um segundo julgamento para definir quais medidas serão adotadas para remediar a situação. Essa fase começará em setembro, e ninguém tem ideia de quanto tempo irá durar.

Para esta etapa, o DoJ está fazendo mistério sobre o que ele irá pleitear, porém com base no histórico de processos passados de anticompetitividade e na forma como ele apresentou o caso contra o Google, dá para ter uma ideia de algumas alternativas que poderão ser discutidas:

Desmembrar o Google em operações menores e independentes

Esse seria o pedido mais óbvio. Atualmente, o Google coleta e consolida informações de seus usuários a partir da Busca, do Google Flights, do Waze, do Google Calendar, do Gmail, do Google Drive, do YouTube (que por sinal é o segundo buscador mais utilizado do mundo 👀), do Google Imagens e de dezenas de outros produtos e serviços para usar isso na hora de vender publicidade direcionada, a um preço inatingível para o resto do mercado.

Ao separar, por exemplo, o buscador da área de anúncios de texto e, talvez, também transformar o buscador em uma área separada do resto do Google, essas divisões teriam sua vantagem competitiva de integração (definida neste momento como injusta) neutralizada, nivelando mais a concorrência do resto do mercado. Na realidade, essas unidades também passariam a competir entre si não apenas pelos mesmos dólares de anunciantes, mas também para oferecerem tecnologias mais eficientes uma do que a outra na hora de fazer essa grana valer.

Deixar o usuário escolher previamente seu buscador padrão em navegadores

Nos sistemas da Apple, qualquer usuário pode acessar os ajustes do Safari e escolher entre o Google, o Yahoo, o Bing, o DuckDuckGo e o Ecosia. Porém, como todos já sabem e como o próprio DoJ comprovou no processo contra o Google com a ajuda de especialistas em economia comportamental, ninguém faz isso.

A partir do iOS 17.4 na Europa, por conta da DMA 6Digital Markets Act, ou Lei de Mercados Digitais., os usuários passaram a ter de informar ao sistema qual será o navegador padrão que eles desejam usar. No momento de configurar um iPhone, eles são apresentados com uma lista que traz, em ordem randômica, aproximadamente dez dos navegadores mais usados no país. Dali em diante, o navegador escolhido passa a ser o padrão do sistema.

No caso do Google, é bastante provável que a Justiça defina algo semelhante, o que pode ter o efeito colateral de varrer um faturamento de pelo US$20 bilhões anuais à Maçã. Neste caso, a Apple poderia tentar emplacar algo como uma Taxa de Tecnologia para buscadores que quisessem fazer parte da lista de opções, a exemplo do que ela fez com apps externos à App Store na Europa. Isso certamente daria início a outros processos de práticas anticompetitivas, mas abordemos um imbróglio de cada vez.

Conta de guardanapo: no ano fiscal de 2022, a Apple divulgou um faturamento total de US$394,3 bilhões. Desse valor, US$78,1 bilhões vieram da área de Serviços, que é onde Apple categoriza a grana que vem do Google. Considerando o repasse de US$20 bilhões do Google, isso representa apenas 5% do faturamento total da Apple, mas 25,6% do faturamento de Serviços.

Seja como for, a obrigatoriedade da escolha prévia de um buscador padrão em sistemas operacionais parece inevitável, mesmo que não venha neste momento.

Resumo da ópera

O caso DoJ vs. Google é bastante representativo de um problema endêmico no setor de tecnologia: a Lei Antitruste Sherman não serve para nada. Quando ela foi estabelecida, o plástico ainda não havia sido inventado e o raio-X ainda não havia sido descoberto. A lâmpada incandescente de Thomas Edison existia há apenas 12 anos, e Santos-Dumont ainda levaria 16 anos para inventar o 14-bis.

Ao longo dos últimos 134 anos (e a despeito de alguns complementos como a Lei Clayton, de 1914), as empresas se tornaram bastante eficientes na missão de encontrar as brechas estabelecidas em uma lei que obviamente não poderia ter previsto (e sabiamente não tentou prever) as dinâmicas de mercado do futuro.

Enquanto alguns podem celebrar casos como os do Google como uma vitória dessas empresas e do livre capitalismo, me parece meio óbvio que a coisa toda seja algo mais próximo de um bug do que de um recurso. Se uma lei tem a intenção de favorecer a concorrência, ela precisa ser revisada se alguém encontrar uma forma de se apoiar justamente nela para agir de forma oposta. Quando um algoritmo funciona quase sempre, ele precisa ser melhorado. Não é mérito do bug quando dá errado.

Para ser sincero, a minha expectativa é que o Google fará exatamente a mesma coisa que a Microsoft fez nos anos 1990-2000, e cavará algum tipo de acordo que, embora possa parecer inconveniente, não mudará em nada as coisas no médio-longo prazo. Trinta anos depois do processo que quase desmembrou Microsoft, ela ainda é uma das empresas mais valiosas e poderosas do mundo, e não se avexou de seguir comprando concorrentes e startups a torto e a direito, com ou sem supervisão judicial.

A diferença aqui, é claro, está no fato de tudo isso estar acontecendo em um momento de transição no segmento de buscadores, graças à IA generativa. Apesar de o Google ter apresentado seus AI Overviews na última Google I/O, a sua proposta para concorrer neste mercado se provou muito aquém da qualidade de ferramentas como a eficiente, porém controversa Perplexity, ou à do pouco relevante, porém igualmente eficiente Arc Search. Isso sem mencionar o iminente SearchGPT da OpenAI, que certamente seguirá chacoalhando esse mercado.

Somando isso ao processo, o Google se encontra em uma situação bastante peculiar e provavelmente inédita no mundo da tecnologia: suas ações monopolistas agora fazem ele correr o risco de ter a operação engessada em um segmento ultrapassado, o que por sua vez o impedirá de ter a chance de controlar ou de influenciar a direção segmento do futuro.

Enfim, concorrência.


Bônus: se você quiser ler ou escutar um papo bem aprofundado sobre esse assunto, Nilay Patel, editor-chefe do The Verge (e bacharel em direito), conversou com Jonathan Kanter, o líder da divisão de antitruste do DoJ, a respeito do veredito da última semana. Kanter é evasivo nas respostas de futurologia desse caso específico, mas eles exploram o impacto legal da coisa toda e o que isso pode significar para os outros processos de anticompetitividade de empresas de tecnologia no qual o DoJ está envolvido.

Notas de rodapé

  • 1
    Federal Trade Commission, ou Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos.
  • 2
    Department of Justice, ou Departamento de Justiça dos EUA.
  • 3
    Internet Explorer.
  • 4
    Lei do ano 1890 que estabeleceu os padrões e definições de concorrência para o mercado americano.
  • 5
    Por que será?
  • 6
    Digital Markets Act, ou Lei de Mercados Digitais.

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