O melhor pedaço da Maçã.
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PARC (Xerox)

50 anos atrás, um computador definiu como seria a computação pessoal

Spoiler: não foi o Mac!

Estou escrevendo este texto no teclado de um computador pessoal. Cada tecla que aperto insere a letra ou o caractere desejado em uma tela em alta definição. Várias “janelas” estão sobrepostas umas sobre a outras, como folhas de papel em uma mesa de trabalho. Cada uma dessas janelas é de um software diferente, com funções e objetivos específicos. Uso um mouse para mover um cursor pela tela e selecionar qual software quero usar naquele momento ou qual arquivo quero acessar. Meu computador está conectado a outros computadores, de maneira que posso transferir arquivos entre esses computadores apenas com alguns cliques do mouse. Se necessário, posso enviar este texto por email para alguém interessado em ler, ou ainda, posso imprimi-lo através de uma impressora conectada ao computador.

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Eu sei que, para você, que está lendo este texto, não há nenhuma novidade no parágrafo anterior. Você também usa o seu computador da mesma maneira, não importa se você tem um Mac ou um PC, se está usando Windows ou Linux. Você provavelmente já aprendeu a usar assim os computadores, desde a primeira vez que usou um. Esse é o padrão com que o mundo interage com os computadores desde pelo menos meados dos anos 1980, quando a Apple popularizou o uso de interface gráfica e mouse em computadores — primeiro timidamente com o Lisa e depois massivamente com o Macintosh.

Talvez, o que você não saiba, é que todas essas coisas (hoje triviais) que fazemos com computadores nasceram em uma empresa que produzia equipamentos de escritório (não necessariamente computadores), em um grupo extraordinário de profissionais que pode ser considerado um dos maiores times de cientistas de computação já reunidos em uma organização.

Em meados da década de 1960, a Xerox já era uma gigante, praticamente um monopólio no mercado americanos de fotocopiadoras (que ela havia inventado duas décadas antes) e começava a vislumbrar o impacto que os computadores estavam causando nos escritórios. Computadores estavam gerando relatórios, gráficos, organizando e analisando dados. Entretanto, os computadores ainda eram máquinas enormes, mainframes que ocupavam um andar inteiro, pesavam toneladas e demandavam profissionais especializados para a sua operação.

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A Xerox resolveu entrar no mundo da computação, mas com uma visão um pouco diferente da das demais empresas na época. Ela queria entender os impactos que o computador teria no trabalho em escritórios no futuro, como os ambientes dos escritórios seriam transformados pelo computador nos próximos 10-15 anos. Assim, em 1969, a empresa decidiu montar um centro de pesquisa que se dedicaria a novos desenvolvimentos em ótica e materiais (fundamentais para seu core business: fotocopiadoras), e em computadores. Nasceu então o Xerox Palo Alto Research Center (PARC).

Para compor o time de pesquisa em computação do PARC, foram capitaneados cientistas e engenheiros de várias universidades, muitos deles financiados e envolvidos em projetos da ARPA (Advanced Research Projects Agency), a agência de defesa criada como resposta ao lançamento soviético do Sputnik. Alguns deles estiveram inclusive envolvidos no desenvolvimento da ARPANET, o ponto inicial dessa coisa que hoje conhecemos como internet.

Com vocês, o avô do iPad

No time formado logo no início do PARC estava Alan Kay, um jovem pesquisador oriundo da Universidade de Stanford. No PARC, Kay formou o Grupo de Pesquisa em Aprendizagem, onde passou a desenvolver a sua ideia de um “computador pessoal para crianças de todas as idades”. A visão de Kay era a de um computador portátil (handheld), operado através de uma tela que poderia receber inputs de uma stylus. Lembra algo? No vídeo abaixo, de 2002, o próprio Kay explica a ideia do que seria o Dynabook.

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Em um artigo de 1972 [PDF], no qual apresenta a ideia do Dynabook, Kay afirmou:

Este artigo especula sobre o surgimento de manipuladores de informação portáteis e pessoais, e de seus efeitos quando usados por crianças e adultos. Apesar de que possa parecer ficção científica, a tendência atual de miniaturização e redução de preço quase garante que muitas das noções aqui discutidas se tornarão realidade no futuro próximo.

O foco do Dynabook era educação, que crianças e adultos pudessem criar suas próprias ferramentas, seus modelos e simulações, seus jogos. Que pudessem compartilhar suas criações e trabalhar em conjunto. Para viabilizar isso era fundamental que o Dynabook tivesse um software fácil de usar, intuitivo e amigável. Mais do que isso, o Dynabook precisava de uma linguagem especial, que pudesse ser compreendida pelo usuário (mesmo se criança) e pelo seu próprio hardware.

Liderado por Dan Ingalls e Adele Goldberg, o time começou a desenvolver para o Dynabook o Smalltalk, que viria a ser conhecida como a primeira linguagem de programação orientada a objeto. O Smalltalk influenciou o desenvolvimento de várias linguagens que temos hoje, como C#, Python e Java.

Xerox Alto

Dois outros pesquisadores do PARC, Chuck Thacker e Butler Lampson, também queriam construir um “pequeno computador”, mas com um conceito um pouco diferente do do Dynabook.

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Thacker e Lampson vinham da Universidade de Berkeley, onde tinham trabalhado no Projeto Genie, um projeto de pesquisa em computação que desenvolveu o primeiro sistema de computação compartilhada — em resumo, vários usuários compartilhando simultaneamente os recursos de um grande e potente computador.

Lampson e Thacker agora pensavam diferente. Para eles, o futuro da computação não estava no compartilhamento de um grande computador, mas sim em pequenos computadores individuais, conectados em rede para a troca de arquivos e informações. Ambos procuraram Kay, o líder do grupo, e pediram orçamento para construir um desses pequenos computadores. Seria algo rápido e relativamente barato. Estaria pronto em alguns meses e usaria muitas das características do Dynabook.

Porém, ao invés de ser portátil, esse computador se encaixaria embaixo de uma mesa. E ao invés de usar uma stylus para escrever e desenhar em uma tela, o computador usaria um mouse para apontar e navegar um cursor por uma tela gráfica de alta resolução. Kay deu seu aval para a empreitada, considerando que esse seria um “Dynabook interino” e que poderia ser usado no desenvolvimento do Smalltalk, enquanto seu Dynabook não estivesse pronto. Bob Taylor, diretor do centro de computação do PARC, foi o responsável por alcunhar o nome do novo computador: Alto.

A CPU 1Central processing unit, ou unidade central de processamento. do Alto era uma caixa do tamanho aproximado de um frigobar moderno, suficientemente pequena para caber embaixo de uma mesa e não causar “distúrbios” em um escritório padrão. Era baseada no chip 74181 da Texas Instruments, funcionando a 5,88MHz. O computador tinha 64KB de memória (expansíveis até 256KB) e 2,5MB de disco de armazenamento. O monitor era um CRT 2Cathodic ray tube, ou tubo de raios catódicos. preto e branco de 875 linhas, resolução de 606×808 pixels e montado em modo retrato. Acompanhavam o conjunto um teclado, um mouse de três botões e um dispositivo auxiliar de cinco teclas, que era operado em conjunto ao mouse. Além disso, o Alto era equipado com uma interface para o “sistema Ethernet”, que permitia a comunicação com outros Altos a uma taxa de 3Mbps (vou falar sobre essa e outras inovações do Alto mais à frente, neste texto).

O desenvolvimento do Alto foi moldado pelo o que viria a ser conhecida como a Lei de Moore. Os pesquisadores do PARC acreditavam que o tamanho e o custo dos componentes eletrônicos iriam despencar nas décadas seguintes. Moore já havia publicado, em 1965, sua ideia de que a tendência da indústria eletrônica seria amontoar cada vez mais componentes em circuitos integrados, mas isso ainda não havia se confirmado como “lei”. O Alto demandaria o uso de muita memória para poder exibir seus gráficos na tela, então, o uso das novíssimas memórias 1103 DRAM 3Dynamic random access memory, ou memória dinâmica de acesso aleatório. da Intel seria absurdamente caro no início, mas em alguns anos seu custo diminuiria exponencialmente.

Em dezembro de 1972, Lampson enviou um memorando interno com o título “Why Alto”, no qual explicava por que a Xerox deveria investir em construir algumas (10-30) unidades do Alto, e como ele poderia ser usado internamente em diversos setores da empresa. Os diretores da Xerox concordaram e autorizaram a produção experimental de algumas unidades. Rapidamente, o número de Altos produzidos aumentou consideravelmente e pulou de algumas dezenas para algumas centenas. Todo funcionário da Xerox que testava um Alto, queria um pra si.

Em pouco tempo, o Alto se proliferou pelos escritórios da Xerox nos EUA. Algumas unidades foram cedidas ao governo americano e às forças armadas. A Xerox inclusive criou um vídeo para demonstrar a sua visão do futuro dos escritórios com o Alto.

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Vídeo promocional produzido pela Xerox, para compartilhar o que ela imaginava que seria o escritório do futuro. 

Ethernet

Bob Metcalfe, então um jovem recém-formado em Harvard, se juntou ao PARC e trouxe a ideia de introduzir no Alto uma nova tecnologia de comunicação entre computadores que ele estava desenvolvendo. Metcalfe batizou a nova tecnologia de “ETHER Network”. O Alto agora podia trocar arquivos diversos com outros Altos, através de um cabo coaxial.

Metcalfe saiu do PARC em 1979 e fundou a 3Com, para comercializar placas e dispositivos Ethernet para outros computadores. A Ethernet se tornou o padrão mundial para redes locais e conexões com fio que usamos até hoje.

Bravo, Gypsy e as raízes do Word

Um computador que pretendia demonstrar o que seria o “escritório do futuro” não poderia existir sem um programa fundamental: um processador de texto. Da equipe liderada por Charles Simonyi, surgiu em 1974 o Bravo, o primeiro processador de texto WYSIWYG (what you see is what you get) da história. O que você via na tela era exatamente o que seria impresso no papel se você mandasse imprimir o documento. O que você vê é o que você obtêm.

Um ano depois, com a liderança de Larry Tesler, foi desenvolvido o Gypsy, o primeiro editor de texto modeless, ou não modal 4Tesler fala sobre sua carreira e como foi o desenvolvimento do primeiro editor de texto não modal da história nesse artigo [PDF].. Em um editor de texto modal como o Bravo, a saída na tela para cada tecla pressionada no teclado depende do modo selecionado. Uma tecla, ou uma combinação delas, precisa ser pressionada para definir que o processador esteja, por exemplo, no modo “inserir”. A partir de então, o usuário pode digitar o texto que deseja em seu documento.

Outra combinação de teclas precisa ser pressionada para sair do modo “inserir” e ir, por exemplo, para o modo “navegar” ou “editar” do documento. Um editor modal é mais complexo em seu uso e não usufrui dos benefícios de uma interface gráfica e um cursor na tela. O Gypsy simplificava a necessidade de comandos e atalhos no teclado. O mouse e o cursor podiam ser usados para navegar pelo arquivo e por suas páginas. O texto que aparecia na tela, contra um fundo branco simulando papel, era exatamente o que o usuário veria quando o documento saísse impresso da impressora. E ainda, foi no Gypsy que foi inventada a função copiar/colar. Era possível mover pedaços de um texto de um lugar a outro na tela, como demonstra o próprio Tesler no vídeo abaixo.

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Larry Tesler demonstra o Gypsy, primeiro editor de texto não modal e WYSIWYG, e sua função copiar-cortar/colar.

Simonyi saiu do PARC e foi para a Microsoft, onde transformou o Bravo no processador de texto mais utilizado no mundo: o Microsoft Word. Tesler foi para a Apple, capitaneado pelo próprio Steve Jobs após a “visita” feita ao PARC no final de 1979, para trabalhar no desenvolvimento da interface gráfica do Lisa.

Legado e influência

O legado que o Alto e o Xerox PARC deixaram ao mundo da computação pessoal é gigantesco. O Smalltalk passou a ser comercializado pela Xerox e impulsionou o desenvolvimento de linguagens orientadas a objeto. Um grupo de pesquisadores, liderados por John Warnock, saiu do PARC para fundar uma empresa e explorar comercialmente as ideias de impressão de documentos e tipografia digital que haviam desenvolvido no PARC. Essa empresa foi a Adobe, uma das protagonistas do desktop publishing anos depois.

E a Apple?

Quando eu comecei a usar computadores, lá pela metade dos anos 1990, aprendi que a Apple havia “roubado” a ideia da interface gráfica em computadores da Xerox. Repeti essa falácia por muito tempo, sem ao menos procurar saber se era verdade. Afinal, todo mundo que eu conhecia repetia isso, não podia ser mentira! Hoje, sabemos que as coisas não foram tão simples, e a história está muito bem contada na biografia de Jobs, escrita por Walter Isaacson.

Em 1979 a Apple já era uma grande empresa, o Apple II era um sucesso, e a Xerox estava de olho nisso. A Xerox queria investir na Apple, comprar ações da empresa, mas enfrentava resistência por parte de Jobs e da diretoria da Maçã. O Xerox PARC não era nenhum segredo e o time de engenharia da Apple sabia que algumas coisas interessantes estavam sendo desenvolvidas lá dentro.

A equipe que desenvolvia o projeto o qual em breve viria a se tornar o Macintosh estava tentando convencer Jobs a fazer uma visita ao PARC. Jobs então propôs um acordo à Xerox: permitiria que a empresa investisse na Apple em troca de uma visita irrestrita de sua equipe ao PARC, com compartilhamento total de informações. Jobs queria saber o que a Xerox estava escondendo, sem restrições. Assim, no final de 1979, a Xerox concordou. Ela comprou US$1 milhão em ações da Apple (que pouco mais de um ano depois já valiam mais de US$17 milhões) e abriu as portas do PARC a Jobs e sua turma.

Recomendo muito que você leia o livro de Isaacson para os detalhes dessa história. É o capítulo 8, intitulado “Xerox e Lisa”. O fato é que Jobs e toda a equipe da Apple ficaram alucinados com o que viram no PARC. Imediatamente, o desenvolvimento do Lisa foi alterado em direção ao que foi visto no PARC e… o resto é história.

A interface gráfica do Lisa foi inspirada no Alto, mas não era uma simples cópia. Todo o conceito da interface e de como o usuário interagia com ela foi melhorado, o movimento do cursor na tela e a sobreposição das janelas dos aplicativos foi muito aperfeiçoado pelo time da Apple — a interface do Lisa permitia que o usuário arrastasse a janela de um aplicativo na tela, inclusive podia arrastar arquivos para pastas ou de um lugar para outro na tela; o Alto não permitia isso.

O mouse desenvolvido era diferente, mais fácil de usar e muito mais barato que o do Alto — o mouse da Xerox custava US$300, enquanto o da Apple saia por US$15 e funcionava sobre praticamente qualquer superfície.

Dizer que a Apple “roubou” a interface gráfica da Xerox, ou que simplesmente copiou o que viu no PARC é uma simplificação exagerada e injusta. Mais uma vez, leia o livro de Isaacson, essa história está contada com riqueza de detalhes.

A verdade é que a Xerox falhou em não visualizar a oportunidade que o Alto representava. O próprio Jobs diz que “a Xerox poderia ter sido dona de toda a indústria de computadores”. Quando a empresa acordou, já era tarde. Em 1981 ela lançou o Xerox Star, desenvolvido a partir do Alto, que custava mais de US$16 mil e com foco corporativo (escritórios). Foi um fracasso, com menos de 30 mil unidades vendidas.

Conclusão

Apesar de nunca ter sido produzido comercialmente e nunca ter chegado ao consumidor comum, o Xerox Alto definiu as bases do que seria a computação pessoal pelas décadas seguintes. Hoje, mais de 50 anos depois, nós continuamos a interagir com computadores de um jeito praticamente idêntico ao que os pesquisadores do PARC faziam com o Alto na década de 1970. Para muitos, o Alto pode ser pensado como uma máquina do tempo, construído no início dos anos 1970 para mostrar como seria a computação pessoal décadas adiante.

Em 2017, o Computer History Museum restaurou o hardware e o software de um Alto original. Para celebrar a finalização do projeto, fez um evento onde reuniu alguns dos membros do PARC para operar e demonstrar ao vivo o exemplar restaurado. É um vídeo muito legal, que nos ajuda a ter uma ideia concreta do que foi o Alto e do quão avançado ele foi para o seu tempo.

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Para finalizar, algo importante que cabe destacar é que a história do Alto não é a história de um indivíduo em especial. Nós temos o péssimo costume de contar a história da tecnologia como sendo o resultado do empreendimento heroico individual de um ou outro hipster na garagem de seus pais. Isso não é verdade.

O conceito de liderança não faz sentido fora de um grupo. Inovação é resultado de trabalho em grupo. O Alto foi o resultado do trabalho e da dedicação de um grupo extraordinário de profissionais, extremamente diverso, trabalhando como uma comunidade e compartilhando a sua visão de uma computação pessoal gráfica, interativa e conectada.

Obrigado à Xerox pelo Alto e pelo PARC. 50 anos depois, nós continuamos vivendo no mundo imaginado por eles!

Este artigo foi inspirado na matéria publicada pelo IEEE Spectrum em março de 2023, intitulada “50 years later, we’re still living in the Xerox Alto’s world”.

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Notas de rodapé

  • 1
    Central processing unit, ou unidade central de processamento.
  • 2
    Cathodic ray tube, ou tubo de raios catódicos.
  • 3
    Dynamic random access memory, ou memória dinâmica de acesso aleatório.
  • 4
    Tesler fala sobre sua carreira e como foi o desenvolvimento do primeiro editor de texto não modal da história nesse artigo [PDF].

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