
João Fabrício Dantas Júnior
Advogado. Mestre em Direito. Professor universitário. Revisor de manuscritos para revistas jurídicas. Um admirador da tecnologia facilitadora do dia a dia.
Estimados leitores do MacMagazine,
Eu me empolguei em escrever estas linhas depois de ler algumas matérias sobre o bloqueio do X e ainda sobre a liberdade de expressão.
Apresentação
Primeiramente, afirmo que buscarei não utilizar tanto de jargões jurídicos, técnicos ou outra linguagem que façam o texto tornar-se chato para alguns. Não é para isso que ele serve.
Para tanto, apresento-me: sou mestre em Direito, professor universitário em pós-graduação, tenho publicações em revistas jurídicas nacionais Qualis A. Para quem é da área acadêmica, é possível fazer uma busca no Lattes.
Em segundo lugar, sou provavelmente um dos leitores do MM que menos é afeito à tecnologia. Em tempos de muita interação e redes sociais, sou uma pessoa mais discreta virtualmente, arcando com todas as vantagens e desvantagens disso. Os dispositivos da Apple me fornecem estabilidade para minhas atividades, isso é espetacular e já me basta!
Num terceiro e último item desta introdução, sou pesquisador de uma área do Direito brasileiro crítico e deveras esquecido, tanto à academia jurídica como ainda no Direito do dia a dia e na mídia: o Direito Militar.
Sob tal seara jurídica, encontra-se temas como a pena de morte, a proibição do habeas corpus, a adoção de ministros militares para um tribunal superior, prisões administrativas, etc. Isso no Direito nacional é existente, válido, previsto à Constituição Federal: portanto, algumas das restrições de cunho máximo no Brasil.
Em arremate ao meu ponto, minha pesquisa em mestrado se deu sobre a pena de morte, tema que pode atrair muitos que não são ligados à pesquisa acadêmica. E sim, no trabalho, encontrei sete condenados à morte em nosso país, todos no século passado. Mas esse causo é outra história.
Direitos no Brasil
Dito isso, o caso do X bloqueado por decisão do ministro Alexandre de Moraes. Como prometido, tentarei ser simples.
No Brasil, é seguro afirmar que não há direito absoluto. Uma pequena parcela da doutrina jurídica chega a afirmar que, no Brasil, todos possuem o direito de não ser torturados em nenhuma hipótese.
Sobre a tortura, é tema que não parei para desenvolver um pensamento concatenado sobre a constitucionalidade desse eventual direito (o direito a não ser torturado). Talvez alguma situação extrema, de ameaça à integridade de uma pessoa sequestrada, com a captura de um comparsa do sequestrador; talvez uma bomba instalada em um local com grande público, acompanhada da captura do criminoso. Nada conclusivo sobre isso, sobre esse suposto direito a não ser torturado.
Se não há direito absoluto no Brasil, então todo direito seu é limitado por direitos de outros ou pela lei em si. Tudo isso pode ser levado ao Judiciário, que decidirá. Nem mesmo a vida é direito absoluto no Brasil, haja vista a existência da pena de morte no país, prevista lá no Inciso XLVII, do Art. 5°, da Constituição Federal.
Então, alcançamos a liberdade de expressão. Seria a liberdade de expressão um direito absoluto? As redes sociais são reflexo, são extensão do exercício da liberdade de expressão?
Uma resposta curta: não. Como disse acima, não há direito absoluto no Brasil. Para a liberdade de expressão, dada pela Constituição Federal, há ainda no mesmo artigo 5º, que trata de direitos e garantias individuais, o igual direito de proteção da honra, por exemplo.
Primeiro limite: proibição do anonimato
Sim, a liberdade de expressão está prevista ao Inciso IV, do Art. 5º, do texto constitucional: “é livre a manifestação de pensamento, vedado o anonimado”. Logo aqui, o primeiro limite. Você pode expressar-se, falar, escrever… mas não pode defender-se e evitar as consequências do que fala e escreve sob o escudo do anonimato. Deve arcar com as consequências. É o primeiro limite!
Segundo limite: intimidade, vida privada, honra e imagem
As consequências disso se dão numa norma de mesmo poder, se comparado àquela onde é prevista a liberdade de expressão. O segundo limite. No inciso X (não o ex-Twitter) do mesmo artigo (portanto com o mesmo poder, mesma força no Direito): são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem de todos, com direito à indenização por dano dessa violação.
Terceiro limite: crimes e outros
Um terceiro limite se dá nos crimes. Há, no Código Penal, crimes previstos para a defesa dessa honra: a calúnia, a difamação e a injúria (artigos 138, 139 e 140). Esses crimes servem a proteger qualquer um na sua honra, punindo aqueles que atacam uma pessoa, aqueles que injuriam, difamam e caluniam.
Há outras leis especiais, ao largo do Código Penal, que protegem casos especiais. Há crimes para a proteção do Estado (Lei de Segurança Nacional, que hoje foi incorporada ao Código Penal), da honra de candidatos e eleitores durante as eleições, entre outros.
Por último, afora tais afrontas, o Direito limita alguns direitos individuais para que a sociedade possa usufruir de uma convencia mais humana. Há um sem número de regras para tanto: horário de exibição para filmes impróprios para menores, classificação indicativa no cinema, tamanho máximo para outdoors, regras de trânsito… um zilhão de exemplos.
Um histórico da liberdade de expressão no Brasil
Esse tema tomou proporções gigantescas nos últimos anos.
O Brasil viveu a abertura política, com o fim da ditadura, num processo que durou de 1979 a 1986. Voltou a imprensa livre e a liberdade de expressão (limitada, lembrem, por outros direitos de igual poder).
Todos podem sair à rua, falar, conversar, escrever e protestar. Sempre exercendo o direito, nos limites legais, e arcando com as consequências: injúria, difamação, calúnia, danos provocados à propriedade alheia, responsabilidades sociais, etc. Mesmo com o fim da censura, há responsabilidade pelo que se fala.
Antigamente, aqueles que exerciam seu direito de se comunicar com grandes massas, o faziam através de papel. Poderia ser através de jornais, revistas, etc. No papel impresso, se leva um tempo para escrever, mais um tempo para imprimir e, por fim, um tempo para carregar os caminhões, além de distribuir às bancas de jornais e revistas. Depois, o titular do direito da liberdade de expressão (para grandes massas) deveria esperar para que seus pensamentos chegassem ao público, e só aí toma alguma proporção, alcançando repercussão.
A liberdade de expressão, observem, não é a liberdade de imprensa. Você, que não é titular de perfis em redes sociais, não é jornalista, colunista em grandes portais, pode falar, conversar e escrever. Mas, igualmente, com limites. A liberdade de imprensa é, por fim, uma faceta da liberdade de expressão; mais que isso: um método de controle dos atos do governo, uma chance de crítica com reverberação. Tudo, contudo, limitado ao próprio Direito.
O fato de expressar-se ser fruto de um simples exercício da fisiologia, a abertura da boca, não resulta que seu exercício é livre. O que pode existir é uma facilidade de exercício, mas não um ato sem limites.
Desse exercício do direito de se expressar, com os limites já ditos, todos aqueles que antigamente escreviam em jornais e revistas exerciam a liberdade de expressão, especializada na liberdade de imprensa. Por isso, se cometessem excessos, poderiam ter uma medida judicial para retirar os exemplares das ruas e ainda arcariam com uma indenização. Isso porque exerciam um direito que possui limites (como todos os outros direitos) fora desses limites: o abuso do direito.
Se alguém fosse caluniado, difamado ou injuriado num jornal impresso, jornal esse distribuído às 3h da manhã, poderia o ofendido socorrer-se do Judiciário, conseguir uma antecipação de tutela às 8h, e tentar retirar a maior quantidade de exemplares das ruas para que a sua honra não fosse atingida. Apenas depois disso, requeria ainda uma apuração da responsabilidade pela matéria, com a respectiva indenização e reparação do dano causado. Claro, me refiro aos aspectos e às características para depois da abertura política, depois do fim da ditadura, mas antes das redes sociais.
A liberdade da imprensa é valiosa. Há o direito de criticar, investigar, tecer comentários literários sobre artistas… há o direito de criticar restaurantes, pratos, etc. Por outro lado, há limites à liberdade de imprensa.
Hoje, na medida em que qualquer cidadão pode ter uma rede social — e isso é bom — há desafios práticos para vivermos num sistema sadio e que funcione. O exercício do direito de se expressar tem outra roupagem. A agressão aos direitos da honra e a proteção desta, idem.
Se antes levava-se um tempo para escrever, imprimir e distribuir material, eventuais agressões e excessos eram passíveis de controle, mesmo que precário. Não me refiro à censura, aquela exercida pela Ditadura Militar, com censores que tinham acesso ao material a ser impresso previamente! Me refiro aos excessos legais, que agrediam direitos de terceiros em sua honra em jornais impressos e revistas.
Repita-se: não cabe censura prévia, como se fazia à Ditadura Militar. Apenas excessos e ataques eram combatidos com a retirada do jornal/da revista, para evitar maiores danos injustos a imagem ou honra de alguém.
Hoje, não é mais fisicamente possível evitar danos tão rapidamente como antes. Se fala, filma e distribui de casa, do quarto, com um smartphone, para milhões de pessoas. A informação é produzida mais rapidamente e se espalha mais rapidamente.
Contudo, (quase) todas as leis e proteções vigentes antes, ainda vigem hoje, pois se adequam à Constituição Federal. A lógica é a mesma, mas os meios utilizados hoje são mais modernos e imediatos. Afora a Lei de Imprensa (esta não recepcionada) de um lado, de outros a liberdade de expressão e a defesa da honra previstas à Constituição, desde 1988, seguem as mesmas.
O caso X
O quadro hoje é outro. A rede social não é um jornal, que possui seus colunistas. Jornais impressos de antigamente tinham seu editor, alguém que aprovava as matérias de cada jornalista/colunista. Caso ocorresse um excesso ou um crime, a responsabilidade poderia recair sobre o autor da coluna e ainda sobre o editor que aprovou a matéria.
O proprietário do jornal também poderia sofrer consequências. Mesmo não possuindo nenhuma participação na produção intelectual do escrito, sua responsabilidade sobre a publicação em si poderia ser suficiente para atingi-lo, de modo indireto, posteriormente, ao não cumprir ordens judiciais proferidas para a proteção de direitos violados pela matéria publicada.
A responsabilidade da rede social não é nula. Ela existe, mesmo que tal responsabilidade surja depois de todo o estardalhaço. Gosto muito de utilizar exemplos absurdos e extremos para me fazer entender.
Imagine um mercadinho chamado Zezinho. Um fabricante de chocolates, aqui intitulado Doce do Céu, vende seus produtos por todo o Brasil, em vários supermercados — inclusive no mercadinho Zezinho. Num momento posterior, a Anvisa ou a Vigilância Sanitária recebe uma reclamação, fiscaliza o produto e confirma que o chocolate Doce do Céu está impróprio para consumo. Há regras a se seguir para a fabricação do chocolate, para a proteção do consumidor e ainda para a proteção da saúde pública.
A Anvisa ou a Vigilância Sanitária notificam o mercadinho Zezinho para que se retire o chocolate Doce do Céu das prateleiras, sob pena de multa. O mercadinho não fabricou o chocolate, apenas o colocou à venda. Contudo, ele tem responsabilidade sobre a exposição e deve recolher o produto, sob pena de multa. A exposição estará colocando em risco a saúde pública.
Caso não cumpra a determinação, o estabelecimento poderá ser multado. Se insistir, poderá ser fechado (lacrado — não algum neologismo de “lacração”!), pois mantém à venda produto que viola leis de proteção ao consumidor.
No X, um usuário pratica o direito de se expressar, mas o faz em excesso. Se expressa praticando calúnia, difamação, injúria. Ele poderá ser processado por isso. Contudo, antes ou durante o processo, aquele que se sente ofendido pede, por uma tutela antecedente judicial, ou ainda no processo, que se retire do ar a injúria, a difamação, a calúnia (o antigo “recolher o jornal” que continha o crime).
As regras são as mesmas. Mudam os atores da peça. Muda a roupagem usada antigamente: de celulose e tinta, agora são bits.
Se notifica o X para retirar as palavras do usuário do ar, pois exercidas em excesso, ilegalmente. O X se nega. E aí a coisa começa a degringolar. Não cabe anonimato no exercício da liberdade de expressão. Você é responsável pelo que diz.
A retirada do X do ar
O mercadinho Zezinho expunha à venda um chocolate impróprio para consumo. Houve fiscalização, houve notificação administrativa, um processo administrativo — onde o mercadinho Zezinho pôde se defender. Houve a multa administrativa. Depois, um processo judicial, onde o mercadinho Zezinho foi citado e teve o direito de se defender, terminou por condenado a uma pena de multa judicial.
Infelizmente, nada disso foi suficiente para que o mercadinho Zezinho deixasse de expor à venda o chocolate Doce do Céu, impróprio para o consumo, pois não seguia as regras e os limites constitucionais e infraconstitucionais para o exercício do direito à liberdade econômica (não há direito absoluto). Terminou por ser interditado.
No X, o usuário Luisinho exerce seu direito à liberdade de expressão. Contudo, esse usuário exerce o direito fora dos limites (lembrando sempre: todo direito tem limites). Ele não pode caluniar, difamar ou injuriar. Não pode, ainda, divulgar intencionalmente notícias falsas (fake news), com o intuito de tentar influenciar campanhas políticas ou economias (e ainda incorreria em crime da Lei Eleitoral, ou ainda crime da Lei dos Crimes da Economia Popular). As fake news podem ainda servir a colocar a saúde pública em risco, podem servir a movimentos antivacinas, etc.
Luisinho é processado. No processo, para evitar danos maiores, o Ministério Público pede ainda a notificação da rede social X (o novo mercadinho Zezinho), no intuito de retirar a postagem do ar, pois tal exercício da liberdade de expressão foi feito fora dos limites legais. Uma medida cautelar, apenas para evitar danos maiores.
O mercadinho Zezinho não produz um palito de dente. Apenas compra produtos de terceiros, os revende e é obrigado a seguir as regras legais para o exercício do comércio no Brasil. A rede social X não produz uma linha de pensamento (se produz, me corrijam), apenas reúne expressões de terceiros e as expõe, e deve se curvar aos limites legais para que se mantenha ativo um meio de comunicação, assim como fazem todos os outros no país.
Um canal de TV não pode transmitir um filme impróprio para menores às 8h da manhã, mesmo que o filme não tenha sido produzido por esse canal de TV. Uma ordem judicial pode impedir a transmissão, para evitar danos maiores. Se já transmitido, resta multar o canal de TV. Se ele insistir, sobrará seu bloqueio. Tal canal possui muitos telespectadores, que se revoltam com seu fechamento, e convocam um protesto contra o juiz que proferiu a ordem de bloqueio temporário como punição. Estou divagando… voltemos ao X.
A rede social X diz que não retirará a postagem. No processo, o juiz aplica uma multa. Uma multa que possui o mesmo objetivo daquela aplicada ao mercadinho Zezinho, estabelecimento esse que defendia a exposição à venda do Chocolate Doce do Céu. O X defende a liberdade de expressão. O mercadinho Zezinho defende a liberdade iniciativa. Dois valores existentes na Constituição Federal, mas também dois valores limitados por outros igualmente poderosos: o direito à honra e à saúde.
Observe-se: essa retirada do ar pode também ser resultado de outras desobediências às normas administrativas brasileiras, previsões legais: é o caso da obrigação de manter pessoal responsável pela representação legal da rede social no Brasil. Essa regra é prevista no Código de Processo Civil e ainda em outras leis especiais, sobre outros temas.
Essa impossibilidade do Direito em relação às novas relações virtuais, exercidas de longe, junta-se ao uso das redes virtuais privadas, as chamadas VPNs. Os efeitos de determinações legais e judiciais que pretendam restringir alcances da tecnologia e da internet num país sofrem crises de eficácia. É o caso do X.
Conclusão
O direito de se expressar, como qualquer outro, não admite excessos. Quem foi vítima desses excessos tem direito à proteção. O direito de se expressar é protegido, assim como são a honra, a saúde pública e outros.
A repercussão do caso se deu pelo bloqueio do X. Não é culpa da rede em si, mas ela é o meio de divulgação. Por isso, deve cooperar e se submeter à lei diante de algum eventual delito que esteja sendo investigado, processado ou mesmo já condenado.
A liberdade de expressão é defendida no Brasil. Dentro dos limites, como tudo o que existe no Brasil. Um perfil em rede social que descumpra a lei, seus limites, resulta em responsabilização do usuário, seja ela administrativa, civil ou mesmo penal. A rede social que detém esse perfil, diante de ordens para dirimir as consequências do exercício ilegal da liberdade de expressão, deve também cumprir ordens judiciais para que ela não seja meio para cumprimento de ilegalidades. O mercadinho Zezinho e o chocolate Doce do Céu.