Redes sociais e juventude sempre foram uma mistura complicada e, especialmente nos últimos anos, ninguém simbolizou melhor esse imbróglio do que o Instagram.
Antes mesmo de a executiva Frances Haugen vazar, em 2021, um conjunto de documentos internos os quais comprovaram que a Meta sabia do impacto nocivo que o Instagram podia ter sobre jovens usuários — e especialmente usuárias —, o debate sobre saúde mental e redes sociais já não era mais um assunto exotérico, discutido sob um espectro abstrato ou teórico.
Àquela altura, todos já havíamos lido notícias ou, pior, lidado com situações envolvendo diferentes tipos de abuso, compulsão ou predatismo, graças à forma legalmente permissiva como as empresas de redes sociais sempre puderam tocar seus negócios no ocidente.
Digo “ocidente” porque na China, por exemplo, o Douyin (versão local do TikTok) é obrigado desde 2019 a limitar o uso do app a 40 minutos diários para menores de idade, além de proibir o seu acesso entre 22h e 6h. Para completar, ele é obrigado a dar ênfase na recomendação de conteúdos científicos e educacionais.
Isso é conhecido como “modo adolescente”, cuja ativação é facultativa por parte de pais, mães ou responsáveis por jovens a partir de 15 anos de idade, mas obrigatória para menores de 14 anos.
Regras assim não são uma novidade nessa região do globo. No mundo dos jogos, por exemplo, o Vietnã instituiu em 2010 um limite de 180 minutos diários de gameplay para menores de 16 anos e, atualmente, vem tramitando uma lei que reduzirá esse limite para apenas 60 minutos diários.
Já a Coreia do Sul instituiu, em 2011, o Ato de Proteção à Juventude (apelidado de Lei Cinderela), o qual proibiu menores de 16 anos de jogarem videogame entre 0h e 6h. Ao longo dos anos, a lei sofreu alterações (incluindo passar a permitir que pais, mães ou responsáveis autorizassem seus filhos a jogar durante a madrugada), mas não resolveu. Ela foi abolida em 2021 e, em seu lugar, entrou uma regulamentação a qual permite que responsáveis definam os horários que julguem mais adequados para seus filhos e filhas.
De volta à China, o país aprovou, em 2021, uma regulamentação que limitou em 3 horas semanais o tempo de gameplay para menores de 18 anos; posteriormente, o tempo de uso da própria internet também passou a ser regulado, variando entre 40 minutos por dia para menores de 8 anos, e 2 horas por dia para menores de 18 anos. Em todos os casos, o uso é proibido entre 22h e 6h.
De volta ao Instagram
Na última semana, a Meta anunciou as Contas de Adolescente, sua maior iniciativa de controle parental até hoje.
Obviamente, isso não veio de forma 100% proativa. Desde os vazamentos de Haugen, a Meta vinha enfrentando processos, mudanças regulatórias e precisando prestar esclarecimentos frequentes a diferentes governos pelo mundo, ao mesmo tempo em que a pressão popular também passou a aumentar, especialmente após o lançamento de livros como “A Geração Ansiosa”, de Jonathan Haidt — que eu repercuti recentemente.
“Sabemos que os pais querem ter confiança de que os adolescentes estão usando as redes sociais para se conectar com seus amigos e explorar seus interesses sem ter que se preocupar com experiências perigosas e inadequadas”, diz a Meta no início do comunicado de imprensa anunciando as Contas de Adolescente.
A seguir, ela elenca as principais características da nova função, incluindo trocar para privadas as contas de menores de idade e notificar o jovem com a recomendação de fechar o app após 60 minutos de uso no dia.
Além disso, a Meta afirmou que implementará novos sistemas de verificação (incluindo o uso de biometria) para ajustar os perfis de adolescentes que mentiram a idade ao criar uma conta no app, e para identificar usuários abaixo de 13 anos que, teoricamente, não deveriam estar por lá.
Um bom começo, certo?
Bem… mais ou menos. Primeiro, tiremos o principal problema da frente: a questão do adulto responsável pela conta do jovem.
De acordo a executiva Naomi Gleit (diretora de produto da Meta), em entrevista ao Platformer, a empresa não terá como saber se a conta de adulto associada à do adolescente pertence, de fato, a um adulto responsável por aquele jovem. Isso quer dizer que qualquer perfil maior de 18 anos poderá ser definido como controlador das permissões da conta de um adolescente, o que derrota o propósito da coisa toda.
Mas deixando isso de lado por um momento, vale analisar as categorias de ameaças que o Instagram tentou atacar de uma vez só com as Contas de Adolescente.
Conteúdo inapropriado
No caso de jovens usuárias, um aspecto historicamente complicado é o de publicações que envolvem autoimagem e saúde mental.
Não faltam exemplos de adolescentes que manifestaram intenções de automutilação, e passaram a ver conteúdos recomendados que justificavam, promoviam ou exacerbavam essas questões. Já para jovens usuários, a recomendação de conteúdos violentos ou sexualmente sugestivos não é raridade.
Na tentativa de minimizar esses casos, o Instagram disse que as Contas de Adolescente serão ajustadas para o nível mais restritivo de controle de conteúdo sensível, e elas não verão recomendações de postagens “que mostrem pessoas brigando ou promovendo procedimentos estéticos”. Ótima notícia!
Além disso, o pai, a mãe ou o/a responsável por aquela conta terá acesso à lista de assuntos sobre os quais o jovem informou ao app que gostaria de ver, outra funcionalidade nova da plataforma. Notícia não tão ótima assim — mais sobre isso à frente.
Exposição a predadores
Esse é outro problema majoritariamente (mas não exclusivamente) enfrentado por jovens usuárias. Em uma matéria recente, o Wall Street Journal mostrou que 92% dos seguidores de uma jovem influenciadora de roupas para adolescentes eram homens adultos. Nas mensagens diretas, não faltavam observações sobre seu corpo e avanços mais explícitos.
Para mitigar esse tipo de asquerosidade, além de tornar as contas de adolescentes privadas, exigindo a aprovação de cada novo seguidor (e apenas essas contas aprovadas poderão enviar mensagens diretas), o adulto responsável pela conta do adolescente terá acesso à lista de pessoas com quem o jovem troca mensagens — sem ter acesso ao conteúdo da conversa.
Aqui, novamente, uma boa notícia vem junto de uma medida bastante preocupante. Enquanto tornar as contas privadas por padrão é excelente, o acesso do adulto à lista de contatos com quem o jovem conversou recentemente pode ser extremamente perigoso — mais sobre isso à frente, também.
Tempo de uso
Esse é um desafio que dispensa apresentações e que definitivamente não é exclusividade de menores de idade — apesar de ser particularmente difícil para eles, com seus córtices pré-frontais 1Resumindo bastante, é a área do cérebro responsável pelo controle de impulsos. ainda em formação.
Se de um lado o Instagram (e todas as outras redes sociais) age para tornar cada aspecto do app o mais viciante possível, de outro ele já vinha disponibilizando desde 2018 ferramentas como o limite diário de uso do app, bem como o modo silencioso, que suspende a entrega de notificações durante o período configurado.
A partir de agora, a conta adulta responsável pela Conta de Adolescente poderá definir esses ajustes, incrementando o leque de controles parentais que já existiam na plataforma. Aqui, novamente, a coisa pode ser extremamente positiva quando a relação entre o adulto e o jovem for saudável, mas perigosíssima se a relação já não for boa.
Quando o abuso vem de casa
Por mais bem-intencionadas que sejam essas novidades, e muitas delas são inequivocamente positivas, algumas outras parecem ignorar (e, pior, colocar sob ainda mais risco) os jovens cujo convívio domiciliar é justamente a maior ameaça à sua saúde física, emocional ou mental.
O caso mais óbvio é de um pai, uma mãe ou um(a) responsável que não aceite (ou sequer possa saber ou cogitar) que seu/sua filho(a) seja gay. Em situações assim, geralmente o contato social e particularmente o contato social online são alguns dos principais refúgios e redes de apoio.
Analise novamente as funcionalidades das Contas de Adolescente: ter controle sobre quando ou se o jovem pode usar o app. Ter acesso completo à lista de contatos com quem o jovem está conversando. Ter acesso à lista de assuntos de interesse do jovem. Soa como uma boa ideia? Soa como algo seguro?
Resumo da ópera
É óbvio que cada pai, mãe ou responsável cria seus filhos da forma que achar mais adequada. E também é evidente que, independentemente de qualquer coisa, a lei diz que esses adultos têm autoridade e responsabilidade sobre seus jovens até a maioridade.
Mas embora as Contas de Adolescente sejam uma iniciativa bem-intencionada, elas apenas tapam o sol com a peneira, partindo da premissa de que é impossível resolver a fonte desses problemas, e condenando jovens e pais a lidarem eternamente com os desafios e abusos que o próprio Instagram viabiliza, e cuja responsabilidade de resolver deveria ser dele.
Mais do que isso, as Contas de Adolescente ignoram os jovens que enfrentam desafios dentro do próprio lar, onde o controle parental pode ser uma fonte de abuso e não de proteção. E considerando que qualquer conta-fantasma de adulto poderá ser cadastrada como responsável, a maior parte do ônus desse aumento do controle provavelmente cairá sob quem já vive sob algum tipo de agravo.
Por outro lado, é claro que a novidade tem, sim, o potencial de ser uma grande aliada de pais, mães ou responsáveis em situações genuínas em que seus filhos estejam sob algum tipo de risco, seja ele vindo de usuários desconhecidos, da falta de autocontrole sobre o tempo de uso e de acesso a conteúdos prejudiciais.
O equilíbrio sobre todas essas situações obviamente não é simples, e é por isso que me parece uma tarefa impossível tentar resolver tantos aspectos, tão diferentes, de tantos problemas, quanto os que as Contas de Adolescente se propõem a fazer de uma vez só.
A solução, como sempre, talvez resida no meio do caminho. Ferramentas de controle são importantes e necessárias, sim. Mas campanhas abrangentes envolvendo empresas, governos e escolas, informando e preparando os jovens desde cedo contra contra golpes, contra iscas predatórias e contra extorsão íntima poderiam ter um impacto positivo muito mais eficaz e de longo prazo, do que boa parte do que os controles das Contas de Adolescentes se propõem a fazer de forma reativa.
Campanhas assim, inclusive, sempre aliadas a algumas ferramentas de controle, manteriam a autonomia dos jovens — algo essencial para o próprio amadurecimento — e, de quebra, seriam uma forma muito mais sustentável de evoluir de uma vez só a segurança de todo o ecossistema de diferentes redes sociais.
Notas de rodapé
- 1Resumindo bastante, é a área do cérebro responsável pelo controle de impulsos.