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O Prêmio Nobel se rende à IA

Como dois britânicos trabalharam de forma complementar para mudar o caminho da humanidade
IA

No final de 2010, três amigos resolveram criar uma startup cuja missão teria duas etapas: primeiro, resolver o desafio de desenvolver a IA 1Inteligência artificial.. Depois, “usar a IA para resolver todo o resto”.

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Um desses amigos era um britânico chamado Demis Hassabis 2O outro era Mustafa Suleyman, atual CEO da Microsoft AI.. Depois de passar a primeira parte da carreira trabalhando em estúdios de desenvolvimento de jogos, Hassabis decidiu fazer um doutorado em ciência da computação e se especializou em neurociência cognitiva.

Durante o curso, seus estudos se concentraram no desenvolvimento de algoritmos de IA baseados na estrutura cerebral humana, campo esse que de certa forma havia sido desbravado a partir dos anos 1970 por outro britânico, chamado Geoffrey Hinton.

Na última semana, Hassabis foi laureado com Prêmio Nobel de Química. Já Hinton, com um polêmico Nobel de Física.

O laureado arrependido

O nome Geoffrey E. Hinton é conhecido há décadas no campo da IA. Na verdade, muito desse campo existe justamente graças a ele, motivo pelo qual ele é conhecido como “o padrinho da IA”.

Suas pesquisas a partir dos anos 1970 o levaram à Universidade de Toronto e, em 2012, ele e mais dois alunos 3Sendo um deles Ilya Sutskever que, três anos mais tarde, cofundaria a OpenAI. criaram o AlexNet; um sistema que mimetizava o comportamento do cérebro humano para analisar milhares de imagens e aprender sozinho a diferenciar entre elas.

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O impacto do AlexNet e das outras pesquisas de Hinton envolvendo redes neurais o levaram a ser contratado pelo Google 4Na verdade, o Google comprou uma de suas empresas, chamada DNNresearch.. Lá, ele passou dez anos liderando pesquisas que avançaram todos os aspectos das aplicações de redes neurais, incluindo os que viabilizaram a existência de grandes modelos de linguagem como o ChatGPT. Aliás, a arquitetura Transformer, que é o “T” do “GPT”, foi inventada justamente dentro do Google, em 2017.

No início de 2023, porém, Hinton anunciou de surpresa que estava deixando o Google como forma de alertar o mundo sobre os riscos que as IAs representavam para o futuro da humanidade 5Dentre eles, a superação da inteligência humana, o potencial para manipulação e desinformação, a perda de empregos em massa, e questões armamentistas.. Mais do que isso, em entrevista ao New York Times, Hinton disse que parte de si arrependia-se de ter passado a vida trabalhando para possibilitar todas essas tecnologias, e que agora ele estava aliviado de poder falar livremente sobre o assunto, uma vez que sua associação com o Google havia terminado.

https://www.youtube.com/watch?v=-9cW4Gcn5WY
Vídeo da Universidade de Toronto, onde Hinton é professor emérito, abordando os riscos que ele vê quando o assunto é a evolução da IA.

De lá para cá, Hinton passou a manter contato com governos ao redor do mundo para contribuir para iniciativas regulatórias relacionadas à evolução e ao desenvolvimento da IA, e vem aproveitando qualquer oportunidade (incluindo em uma entrevista reagindo ao Nobel) para promover a ideia de que a evolução da IA exigirá muito mais cautela e responsabilidade do que os líderes desse mercado (incluindo ele) têm demonstrado.

O laureado gamer

Valendo-se da familiaridade com o mundo de jogos, Demis Hassabis fez um experimento interessante no projeto inicial da DeepMind: colocou a IA para disputar partidas de games tradicionais, como Breakout 6Que, vale lembrar, foi programado por ninguém menos do que Steve Wozniak, cofundador da Apple. e Pong, mas sem qualquer instrução específica sobre a mecânica do jogo.

Na base da tentativa e erro, a IA foi aprendendo as regras e estratégias de cada jogo e, em questão de dias, tornou-se imbatível em cada um deles.

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Algoritmo da DeepMind aprende a jogar Breakout.

Ao contrário de sistemas como o DeepBlue da IBM, que havia sido programado com o objetivo especifico de jogar xadrez, a DeepMind valia-se de uma tecnologia chamada Rede Neural Convolucional, co-idealizada por ninguém menos do que Geoffrey Hinton, para aprender a jogar de uma forma menos estruturada ou direcionada.

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Pois bem. Os aprendizados com os jogos de Atari levaram a DeepMind a desenvolver o AlphaGo, um sistema que tornou-se capaz de derrotar os melhores jogadores de Go do mundo, um jogo consideravelmente mais complicado e difícil do que o xadrez.

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Este documentário sobre o AlphaGo é obrigatório para quem se interessa pelo assunto.

Os aprendizados com o AlphaGo, por sua vez, levaram a DeepMind a se propor a resolver um dos problemas mais interessantes do mundo da química: o enovelamento de proteínas. Nascia o AlphaFold.

O que acontece é o seguinte: proteínas são formadas por sequências de aminoácidos e, dependendo da sequência, elas se “embolam” de jeitos diferentes. O funcionamento de cada proteína é determinado pelo formato tridimensional desse bololô. No caso do desenvolvimento de medicamentos, por exemplo, é importante saber exatamente esse formato para que seja possível desenvolver compostos que se conectem a lugares específicos desse novelo.

A tarefa de prever o aspecto tridimensional de uma proteína a partir somente da sua sequência de aminoácidos sempre foi um dos maiores desafios desse campo. Para dar uma ideia do tamanho o desafio, um doutorando costumava dedicar seu doutorado inteiro para fazer esse processo para apenas uma proteína.

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Demis Hassabis explica enovelamento proteico e os avanços do AlphaFold em entrevista a Lex Fridman.

Com o AlphaFold 2, esse processo passou a levar segundos, e a DeepMind foi capaz de fazer o mapeamento das mais de 20.000 proteínas que compõem o corpo humano, algo praticamente impossível até então.

Agora que o mapeamento de proteínas e de suas interações está prestes a se tornar algo tão trivial quanto uma busca no Google, imagine o que isso possibilitará no campo da descoberta de novos medicamentos e de novos tratamentos ao longo dos próximos anos. Um Prêmio Nobel é pouco, ainda que bastante merecido.

Duas visões sobre o futuro da IA

As escolhas de Hinton e de Hassabis para serem premiados justamente no mesmo ano pela Fundação Nobel certamente não são uma coincidência. Mais do que isso, elas são simbolicamente complementares.

Isso porque sem o trabalho inicial de Hinton, não teríamos o AlphaFold com Hassabis. E enquanto Hinton tem feito de tudo para soar o alerta em relação aos perigos de uma tecnologia que ele próprio possibilitou 7Alô, Dr. Frankenstein!, Hassabis é a personificação do que acontece quando essa tecnologia é empregada com um foco absoluto no avanço da humanidade.

É verdade que o novo domínio que nós temos sobre enovelamento proteico pode ser usado para o mal? Sem dúvida. Essa é a sina da invenção de qualquer ferramenta. Mas é por isso que o papel de Hinton tem sido tão importante.

E enquanto muito se discutiu na última semana sobre ter sido apropriado ou não premiar Hinton na categoria de Física, fato é que essa premiação lhe oferecerá ainda mais espaço para desempenhar esse importante trabalho de lembrar a todos que, já que a evolução da IA é algo tão inevitável quanto as suas consequências, sempre há tempo para dar um passo para trás e refletir sobre a forma mais apropriada e responsável de aplicar essas novas possibilidades no dia a dia de cada um. Se isso não vale um Nobel, eu não sei o que vale.

Notas de rodapé

  • 1
    Inteligência artificial.
  • 2
    O outro era Mustafa Suleyman, atual CEO da Microsoft AI.
  • 3
    Sendo um deles Ilya Sutskever que, três anos mais tarde, cofundaria a OpenAI.
  • 4
    Na verdade, o Google comprou uma de suas empresas, chamada DNNresearch.
  • 5
    Dentre eles, a superação da inteligência humana, o potencial para manipulação e desinformação, a perda de empregos em massa, e questões armamentistas.
  • 6
    Que, vale lembrar, foi programado por ninguém menos do que Steve Wozniak, cofundador da Apple.
  • 7
    Alô, Dr. Frankenstein!

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