Sempre que surge um novo litígio envolvendo uma gigante do mundo da tecnologia, o resto do mundo tem a oportunidade de ver um pouco dos bastidores e do processo de tomada das decisões que afetam as vidas digitais de todos nós.
Essas informações costumam vir na forma de emails que são disponibilizados publicamente, como parte de um procedimento pré-julgamento do sistema de justiça americano, chamado Discovery.
Nessa etapa, cada lado deve disponibilizar à parte adversária todos os nomes, contatos e até documentos ou comunicações privadas que tenham qualquer nível de pertinência ao caso, para que tanto a acusação quanto a defesa (e o tribunal) tenham a mesma base de informações para explorar ao longo do processo e tentar solucionar o impasse. Se alguém tentar esconder ou deletar provas nessa etapa, o bicho pega.
No mundo da Apple, esses processos já trouxeram à tona comunicações e dados bem curiosos. O email abaixo, por exemplo, foi compartilhado no caso da Maçã contra a Samsung em 2014, e mostra que em 2005 o design do iPhone quase tomou uma direção bem diferente:
A título de informação, Jobs estava se referindo ao então recém-lançado SGH-E910, da Bang & Olufsen em parceria com a Samsung:
E que tal este email, em que Eddy Cue 1Atualmente, vice-presidente sênior de serviços da Apple. sugere levar o iMessage para o Android, em reação ao rumor de que o Google estava próximo de comprar o WhatsApp em 2013?
Nós realmente precisamos levar o iMessage para o Android. Eu já tenho algumas pessoas investigando isso aqui mas eu acho que a gente deveria colocar velocidade total à frente e transformar isso em um projeto oficial. O Google vai dominar instantaneamente o mercado de mensagens com essa aquisição.
Evidentemente, Cue foi voto vencido. Mas, como sabemos agora, ele não foi o único que se mexeu com esse rumor. Ao ficar sabendo da negociação entre o app e o Google, Mark Zuckerberg disparou um email para Jan Koum 2Cofundador e então diretor executivo do WhatsApp., sendo bastante direto sobre o seu interesse:
Pelo visto, Zuckerberg e Koum acabaram se encontrando, e o resto é história. E vale notar que o email acima foi enviado poucos meses depois de o Facebook ter comprado o Instagram por US$1 bilhão, aquisição essa que também teve detalhes revelados no processo de práticas anticompetitivas aberto recentemente pelo FTC contra a Meta:
O fominha
Nos últimos anos, não faltaram processos contra a Meta. Processos antitruste em múltiplos países, por desrespeito à privacidade em mais países ainda, além, é claro, do aberto contra Zuck em setembro de 2004, acusando-o de ter copiado a ideia e roubado o código para fazer sua própria rede. Esse drama de bastidores, por sinal, originou um livro posteriormente adaptado para o cinema pelo mestre Aaron Sorkin, sob direção do genial David Fincher.
No decorrer desses processos, uma coisa ficou clara bastante rapidamente: Zuckerberg é absolutamente paranoico com qualquer nível de concorrência, sempre fez de tudo para sufocar suas ameaças no berço, e nunca teve vergonha de copiar qualquer boa ideia dos competidores para manter a todo custo seu domínio sobre o mercado de redes sociais.
A essa altura, muitos já devem conhecer por alto a relação entre o Facebook e o Snapchat; em 2013, quando o relativamente recém-lançado app do fantasminha passou a fazer sucesso com o formato de Stories, Zuckerberg tentou adquiri-lo por US$3 bilhões. O Snapchat rejeitou a proposta e, ao longo daquele ano, foi de 8 para 34 milhões de usuários, números esses bastante impressionantes para a época.
Após a recusa da aquisição, todos vimos o que aconteceu: o Facebook enfiou Stories em todas as suas plataformas e conteve o crescimento do Snapchat por uns bons anos antes de o app voltar a se tornar popular entre os adolescentes americanos. Mais do que isso, ele conseguiu manter seus apps relevantes.
O que nem todo mundo conhece é a história de como o Facebook fez isso. História essa revelada, é claro, durante a etapa de Discovery de um dos processos que ele vem enfrentando.
Foi o seguinte: entre 2016 e 2019, o Facebook usou a VPN Onavo (que havia adquirido em 2013, por US$120 milhões) para espionar a conexão de todos os seus usuários. Como todos os dados do telefone desses usuários trafegavam através dos seus servidores, ele passou a ter acesso irrestrito a informações incluindo quantos e quais outros apps seus usuários tinham, quais apps estavam crescendo em popularidade, por quanto tempo as pessoas usavam cada app, em qual momento do dia acontecia esse uso, etc.
No caso do Snapchat, o Facebook o identificou como uma ameaça logo após a compra da Onavo, e tentou fazer a aquisição. Quando isso não deu certo, ele desenvolveu uma forma de interceptar e descriptografar [PDF] os dados da conexão com o app — ele posteriormente fez a mesma coisa com o YouTube e com a ferramenta de analytics da Amazon — para entender exatamente quais aspectos do Snapchat tinham mais apelo para seus usuários.
Uma vez munido de todas essas informações, o Facebook aguardou a primeira flutuação no crescimento do Snapchat para lançar os Stories no Instagram e, posteriormente, no WhatsApp, no Messenger, e no próprio Facebook. Note, no gráfico acima, que o impacto foi tanto que o Snapchat viu não apenas uma desaceleração, mas sim um crescimento negativo em 2018!
Vale lembrar que, depois que o Facebook foi pego fazendo esse esquema da Onavo, ele descontinuou a VPN 3Virtual private network, ou rede privada virtual.. Por outro lado, ele lançou o Facebook Research — um app que era instalado por fora da App Store, cujo funcionamento era parecido com o da Onavo, e que pagava US$20 por mês em troca dos dados de navegação de menores de idade (que muitas vezes não sabiam que era isso que estava acontecendo).
Quando o TechCrunch relatou essa história, a Apple suspendeu o certificado do Facebook para desenvolvimento no iOS, marcando um dos momentos mais tensos até hoje na relação entre as duas gigantes.
Os Stories, é claro, são apenas um exemplo do playbook da empresa de adicionar funções (ou até mesmo de reformular completamente a dinâmica de um app) na intenção de copiar um concorrente, conter seu crescimento e, ao mesmo tempo, manter-se relevante. Por muito tempo, a piada que corria o Vale do Silício dizia que o gerente de produtos da Meta se chamava Evan Spiegel 4Cofundador e diretor executivo do Snapchat.. Mas o Snapchat nem de longe era a única fonte de… inspiração da companhia.
Dos Instagram Reels copiados do TikTok ao fracassado IGTV (e Facebook Watch) para concorrer com o YouTube, dos filtros do Instagram copiados (novamente) do Snapchat ao descontinuado Facebook Gaming copiado da Twitch (da Amazon), do Facebook Marketplace copiado da Craigslist às Salas do Messenger copiadas do Houseparty e do Clubhouse no auge da pandemia, da função “On this Day” copiada do Timehop ao Instagram Peek copiado do BeReal, uma coisa é certa: a Meta é uma empresa absolutamente desprovida de qualquer sinal de criatividade (ou de um mínimo de orgulho criativo) e se apoia até hoje no poder que ela pôde acumular ao ser permitida adquirir pelo menos 100 startups, potenciais concorrentes e novos entrantes em mercados adjacentes ao longo dos anos para tornar impossível qualquer tipo de concorrência verdadeira.
O que nos traz aos últimos dias, e ao surpreendente sucesso do Bluesky.
O surpreendente sucesso do Bluesky
Desde que o Threads 5“MAs AlgUéM uSa iSso?!1? HuehHUeuheHU 🤪” Sim, militante. 300 milhões de pessoas. O mundo é bem maior do que o seu umbigo. surgiu como uma alternativa para ex-usuários do X, a Meta vem tentando emplacar a visão dela para o segmento de microblogging.
O problema é que, enquanto ela insiste em tentar promover a rede como uma espécie de TikTok de texto, buscando emplacar um feed algorítmico infinito que nunca entregou a promessa de entender profundamente os interesses dos usuários para recomendar conteúdos relevantes, os usuários vêm reiteradamente dizendo à Meta que eles não querem nada disso, mas sim apenas uma versão alternativa da experiência que o Twitter costumava proporcionar antes de virar uma câmara de eco de intolerância 6A única vez que o mundo pede para a Meta copiar a concorrência….
Pois bem. Aí veio o sucesso recente do Bluesky dentre os americanos e inverteu essa dinâmica.
Da noite para o dia, uma plataforma feita por apenas 20 pessoas passou a atrair mais usuários do que a plataforma da Meta com seus milhares de desenvolvedores, o que “parece ter deixado Mark Zuckerberg genuinamente alarmado”, segundo o site Futurism.
E não é para menos. Segundo um levantamento da Similarweb, a diferença de usuários ativos diariamente no Threads e no Bluesky caiu de 5 vezes, em 5 de novembro, para 1,5x na última semana, ao mesmo tempo em que o uso do app do Bluesky aumentou em 300% nos EUA e no Reino Unido.
Frente a isso, nos últimos dias, o Threads prometeu implementar uma quantidade maior de mudanças significativas, do que tudo o que ele já havia anunciado desde o lançamento da plataforma.
O interessante recurso Pacotes Iniciais que eu citei recentemente como uma das coisas mais legais do Bluesky? Virá para o Threads em breve, A utilíssima função de criar feeds personalizados do Bluesky 7Que, para ser justo, estava sob testes há tempos.? Também. Mensagens diretas, presentes no Bluesky? Pipocaram para algumas pessoas, ainda que de um jeito cretino. Busca avançada, com parâmetros de data? A caminho. Trending topics em mais países além dos EUA? Também. Um player de vídeo decente? Enfim, foi liberado para todo mundo.
Além disso, o infernal feed algorítmico passou a incluir mais postagens de quem o usuário segue e, em breve, poderá ser substituído por completo pelo feed “Seguindo”, que traz apenas as contas que o usuário de fato segue. Demorou.
Do lado do Bluesky, a rede segue tentando aproveitar ao máximo esse momento de sucesso. A taxa de novas pessoas cadastradas desacelerou nos últimos dias, o que já era esperado, mas ainda assim a rede conseguiu ultrapassar a marca de 23 milhões de contas no início da última semana.
E ao mesmo tempo em que o app vem se estruturando para passar a obedecer a regulamentações e burocracias internacionais, além de quadruplicar a equipe de moderação, a jornalista Kara Swisher disse recentemente no podcast Pivot que a rede já vem sendo abordada por uma extensa lista de novos investidores potenciais, depois de ter levantado US$15 milhões no final de outubro (quando ainda tinha apenas 13 milhões de usuários).
Além disso, frente a uma polêmica recente envolvendo os novos termos de uso do X que preveem o uso do material publicado na plataforma para o treinamento de inteligência artificial, o Bluesky saiu na frente para dizer que não usará os posts da rede para esse fim 8O que não significa que terceiros não possam fazer isso., algo que o Threads definitivamente não pode dizer. De quebra, sua enxuta equipe segue trabalhando na estrutura do protocolo de federação AT Protocol que, dentre outras coisas, abrirá caminho para uma loja de algoritmos de recomendação, para que cada usuário personalize ainda mais a própria experiência, e permitirá a migração de contas entre servidores.
É curioso pensar que durante toda a existência do Twitter antes da transformação em X, o Facebook nunca conseguiu encontrar uma forma de replicar a dinâmica, o impacto cultural e o imediatismo da rede do passarinho. Por mais prática que Zuck tenha adquirido ao longo dos anos para copiar e sufocar a concorrência, o “Twitter do Facebook” nunca se materializou.
A ironia é que, mesmo agora que o Threads passou o último ano jogando praticamente sozinho 9Apesar de uma acanhada concorrência inicial com o Mastodon. nesse mercado, ele não conseguiu encontrar o caminho para fidelizar os usuários que passou todo esse tempo despejando a partir do Instagram. Como sempre, foi necessário que mais um concorrente lhe mostrasse o caminho e representasse um mínimo de ameaça, para ele se mexer e saber para onde ir.
A diferença é que o Bluesky não precisa matar o (que sobrou do) Threads para dar certo e, a essa altura, até Zuckerberg já sabe disso.
Viva a concorrência.
Notas de rodapé
- 1Atualmente, vice-presidente sênior de serviços da Apple.
- 2Cofundador e então diretor executivo do WhatsApp.
- 3Virtual private network, ou rede privada virtual.
- 4Cofundador e diretor executivo do Snapchat.
- 5“MAs AlgUéM uSa iSso?!1? HuehHUeuheHU 🤪” Sim, militante. 300 milhões de pessoas. O mundo é bem maior do que o seu umbigo.
- 6A única vez que o mundo pede para a Meta copiar a concorrência…
- 7Que, para ser justo, estava sob testes há tempos.
- 8O que não significa que terceiros não possam fazer isso.
- 9Apesar de uma acanhada concorrência inicial com o Mastodon.