Steve Jobs faleceu no dia 5 de outubro de 2011 e, menos de três semanas depois, sua aguardada biografia, escrita por Walter Isaacson, começou a chegar às prateleiras ao redor do mundo. Eu devorei o livro logo no primeiro final de semana do lançamento nos Estados Unidos, e nunca mais o abri. Ainda assim, uma passagem sempre me vem à mente quando uma empresa importante de tecnologia encontra-se em apuros.
Perto do final do texto, quando já está bem aparente que Jobs não vencerá a recidiva do câncer, Isaacson relata a manhã de 24 de agosto de 2011, quando o executivo informou ao conselho que estava deixando permanentemente o cargo de CEO 1Chief executive officer, ou diretor executivo. da empresa, e que indicava Tim Cook como seu substituto.
Naquele dia, durante o almoço, Isaacson reconta:
Quando a conversa passou para a computação em tablet, alguns expressaram um sentimento de vitória diante da repentina desistência da HP, que, incapaz de concorrer com o iPad, abandonara o setor. Mas Jobs ficou soturno e declarou que, na verdade, era um momento de tristeza. “Hewlett e Packard construíram uma grande empresa e pensaram que a tinham deixado em boas mãos”, disse. “Mas agora ela está sendo desmembrada e destruída. É trágico. Espero ter deixado um legado mais sólido, e que isso nunca aconteça na Apple.” Quando ele se preparou para sair, os membros do conselho o cercaram para abraçá-lo.
No mês passado, na seção de comentários desse artigo, conversei com o sempre gentil leitor que usa o pseudônimo Amigos, sobre como a situação atual da Intel me fazia pensar nessa passagem do livro de Isaacson.
O leitor traçou um interessante paralelo entre a Apple de Cook e o histórico da Intel sob o comando de Paul Ottelini e Bob Swan, e eu me referi bastante informalmente ao CEO Pat Gelsinger como alguém “que herdou uma batata-quente e tá perdidaço”.
Pois bem. Na última semana, Gelsinger foi informado pelo conselho da Intel que ele poderia escolher entre ser demitido ou se aposentar, mas que não poderia ficar. Gelsinger optou pela segunda alternativa, concluindo sua escabrosa passagem de menos de quatro anos pela companhia, período durante o qual ela perdeu mais de 60% do seu valor de mercado.
Ascensão e queda
É bastante justo dizer que Gelsinger dedicou sua vida à Intel. Ele entrou na empresa em 1979, quando tinha apenas 18 anos e, mentorado pelo lendário Andy Grove 2CEO da Intel entre 1987 e 1998., foi essencial para o desenvolvimento e o estabelecimento da arquitetura x86, usada até hoje pela companhia.
Sua infindável lista de contribuições, aliada ao respeito incondicional dos seus colegas, lhe rendeu a inauguração do cargo de CTO 3Chief technology officer, ou diretor de tecnologia. em 2001. Ele manteve esse cargo até 2009, quando decidiu sair da Intel para se juntar à Dell EMC como presidente e COO 4Chief operating officer, ou diretor de operações. e, posteriormente, à VMware como CEO.
Em 13 de janeiro de 2021, a Intel anunciou que Gelsinger estaria de volta a partir de 15 de fevereiro daquele ano, dessa vez como CEO. Ele chegou (sob bastante expectativa) para substituir Swan que, por sua vez, vinha ocupando o cargo de forma interina desde 2018, quando o então CEO Brian Krzanich renunciou após a descoberta de um relacionamento extraconjugal com uma subordinada 5Na época, a Intel tentou contratar Johny Srouji, líder de desenvolvimento de processadores da Apple, mas não conseguiu.. Bagunçado? Exato.
E a situação piora: em 2021, a Apple já havia iniciado a migração dos Macs para o Apple Silicon com arquitetura ARM, provando que havia vida fora da arquitetura x86 da Intel 6Que passava — e ainda passa — por uma interminável e complicada fase de atrasos, quebra de promessas, perda de prazos e evasão de talentos. para o segmento de computadores. O resto do mercado tomou nota, e o boom das IAs generativas só tem intensificado esse processo de migração.
E aqui vai um pouco de ironia para temperar ainda mais essa história: durante o desenvolvimento do primeiro iPhone, Jobs propôs à Intel que ela fabricasse os processadores do dispositivo. O então CEO Paul Otellini rejeitou a proposta, e veio a se arrepender anos depois.
Pois bem. Frente a tudo isso, o mercado viu a volta de Gelsinger como um bem-vindo alívio de todo o drama dos anos anteriores. A confiança no executivo fez a companhia valorizar 20% em questão de semanas, em grande parte graças às promessas ousadas que trouxe consigo.
Segundo o novo CEO, a Intel entregaria avanços significativos em todas as linhas de processadores e ultrapassaria a TSMC — e a própria Apple — ao longo dos próximos quatro anos, graças a um orçamento ilimitado para a equipe de pesquisa. Ele também prometeu que iria reconquistar a Apple como cliente, insinuando até que poderia passar a fabricar chips com a arquitetura ARM ao invés de x86. Além disso, ele prometeu que abraçaria a técnica de litografia ultravioleta extrema (EUV) de fabricação de semicondutores, algo que a empresa deixara escapar pelos dedos na década anterior. De quebra, cravou que a companhia investiria US$20 bilhões em uma nova fábrica em Ohio até 2025, o que rendeu um contrato com o governo dos EUA que repassaria US$8,5 bilhões em incentivos.
O problema? Nada disso se materializou. A evolução dos chips foi apenas parcial e dificilmente seria cumprida ao final do ano que vem; a primeira máquina de EUV chegou apenas no início de 2024 e não manifestou benefícios práticos; ela obviamente não reconquistou a Apple como cliente e não passou a fazer chips ARM; e a entrega da fábrica de Ohio está atrasada em pelo menos dois anos, o que fez o governo americano reduzir o repasse que havia sido combinado inicialmente; de quebra, o mau desempenho da Intel no mercado de ações a fez ser excluída recentemente do índice Dow Jones Industrial Average, sendo substituída pela… NVIDIA. Nada mais simbólico (ou irônico).
Frente a esse conjunto da obra, o mundo não recebeu com grande surpresa o anúncio da aposentadoria imposta a Gelsinger no último dia 2/12. O problema é que, em vez de traçar um plano completo de transição para transmitir confiança ao mercado, a Intel anunciou que duas pessoas irão dividir o cargo de CEO interinamente, enquanto ela busca por um novo diretor executivo permanente. Essa nova troca improvisada fez as ações da companhia despencarem mais de 20% em poucos dias, e elas seguem caindo enquanto escrevo esta coluna.
E agora?
Para Gelsinger, um legado irretocável de 30 anos na área técnica da Intel corre o risco de ser manchado pelos últimos 4 anos em que ficou claro que ele não era a pessoa certa para chefiar a execução da retomada da empresa.
Já para a Intel, atualmente há poucas alternativas aparentes. Suas confusas e perpetuamente atrasadas linhas de processadores x86 se tornam menos relevantes e mais defasadas a cada dia, enquanto o mercado consumidor segue intensificando sua migração para a arquitetura ARM. Ainda há bastante espaço para a arquitetura x86 no importante (e rentabilíssimo) segmento de servidores, mas aqui também a arquitetura ARM vem ganhando espaço em um ritmo cada vez mais acelerado.
Em meio a essa sinuca de bico, há quem defenda que a Intel deva sair completamente do mercado de fabricação de chips, passando a atuar somente como a desenvolvedora das instruções de fabricação. Essa, por sinal, é uma fórmula que tem se provado bastante eficaz para a concorrência, apesar dos vazamentos iniciais da troca de liderança na Intel não deixarem muito espaço para a ideia. Há quem defenda que ela precise apenas dividir as operações — ou apenas vender uma delas — entre fabricação e desenvolvimento, mas isso pode invalidar o acordo com o governo americano. Também há quem defenda que ela deva vender a operação da Altera 7Que basicamente faz chips reprogramáveis., algo que ela já considerou fazer no passado, a exemplo de quando vendeu sua divisão de modems para a Apple.
Seja como for, de certa forma é um alívio saber que Gordon Moore não esteja testemunhando o que está acontecendo com a empresa que ele cofundou, o que obviamente me traz de volta à frase de Jobs no início deste artigo. Por outro lado, é difícil não imaginar que ele tenha levado consigo essa mesma angústia, quando partiu no início do ano passado.
No fim das contas, é inegável que a Intel seja uma das empresas mais importantes da história da computação, e é impossível não torcer para que ela se recupere e volte a liderar o mercado que ajudou a inventar. O problema é que, nos últimos anos, os maiores exemplos que ela tem dado são do que não fazer, e geralmente esse tipo de história tende a acabar sendo contada apenas em museus da história da computação.
Que o sucessor de Cook esteja tomando nota.
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Notas de rodapé
- 1Chief executive officer, ou diretor executivo.
- 2CEO da Intel entre 1987 e 1998.
- 3Chief technology officer, ou diretor de tecnologia.
- 4Chief operating officer, ou diretor de operações.
- 5Na época, a Intel tentou contratar Johny Srouji, líder de desenvolvimento de processadores da Apple, mas não conseguiu.
- 6Que passava — e ainda passa — por uma interminável e complicada fase de atrasos, quebra de promessas, perda de prazos e evasão de talentos.
- 7Que basicamente faz chips reprogramáveis.