Todo dia de Natal, os rankings da App Store americana oferecem uma janela interessante para observar quais tipos de produtos mais vêm despertando a curiosidade dos usuários de lá.
No Natal de 2023, por exemplo, o app mais baixado da App Store americana foi o Meta Quest (hoje, chamado Meta Horizon), utilizado para configurar e administrar os headsets que a empresa vem lançado desde que adquiriu a startup Oculus em 2014, por US$2 bilhões. No Natal anterior, ele havia ficado na quinta posição.
Já na quinta colocação do Natal de 2023, ficou o app Amazon Alexa, utilizado para configurar e administrar os dispositivos da família Echo, incluindo caixas de som e telas conectadas. Em 2022, ele havia ficado na sétima posição.
Pois bem. Dando uma espiada nos apps mais baixados da App Store americana em 25 de dezembro de 2024, foi interessante observar que, além de a Meta ter repetido a dose de alcançar o topo da loja, o app Amazon Alexa galgou o segundo lugar. Já ao longo das quatro posições seguintes, três foram ocupadas por apps ligados à configuração de dispositivos inteligentes.
O Natal das traquitanas conectadas
Se você costuma consumir muitos podcasts gringos, provavelmente escutou no fim do ano passado alguma propaganda dos Aura Frames, que são porta-retratos conectados com um design e acabamento um pouco mais refinados do que os que costumamos ver por aí.
Com molduras e paspaturs 1Estranho no plural, não? Mas passe-partouts me pareceu esnobe demais. que se assemelham a quadros tradicionais e custando entre US$150 (10 polegadas) e US$300 (15 polegadas), a Aura Frames investiu pesado para tentar emplacar seus produtos como bons presentes de Natal nos EUA.
Aparentemente, funcionou. E a Frameo, sua principal concorrente, mas com produtos mais simples a US$50–75, agradece. Apenas cinco dias antes do Natal, os apps das duas empresas sequer apareciam dentre os Top 100 da App Store americana. Até mesmo o app Amazon Alexa 2Cuja linha de produtos inclui telas conectadas, apesar de servirem para mais do que apenas exibir fotos. estava na 92ª posição.
Passada a visita do Papai Noel, todos chegaram ao Top 5 e, pulando o ChatGPT, foram seguidos pelo mytonies: um app utilizado para configurar uma caixa de som conectada infantil chamada Toniebox (que custa US$100), e que funciona em conjunto com pequenos bonecos, chamados Tonies (que saem por US$18 cada).
Considerando a presença da Apple no mercado de caixas de som conectadas e a aparente intenção da empresa de entrar no mercado de telas conectadas, é interessante notar como esses são mercados que de fato despertam o interesse das pessoas (ainda que, na pior das hipóteses, como presentes sazonais), mas em que a Apple provavelmente terá que ralar muito se quiser realmente competir.
Digo isso porque, apesar de não haver um app específico de HomePod que as pessoas precisem baixar para configurar o dispositivo (e, por consequência, nos permitir intuir a variação das vendas), não me parece muito ousado dizer que os HomePods não devem ter vendido na mesma medida que as caixinhas conectadas da Amazon, ou até mesmo as Tonieboxes durante o período de Natal.
Parte dessa suposição pode ser apoiada por praticamente qualquer estudo ou relatório desse mercado até hoje, que costumam mostrar a Amazon com ampla liderança, seguida pelo Google e, por vezes, pela Apple na terceira, na quarta ou até na sexta posição, dependendo da abrangência dos mercados analisados.
Um dos motivos por trás disso certamente é a questão do preço: mesmo custando US$100 (algo excepcionalmente “barato” para os padrões de dispositivos da Apple), o HomePod ainda custa o dobro do Amazon Echo Dot e do Google Nest Mini. O próprio Amazon Echo Spot, com uma tela que exibe horário, temperatura, controles musicais e automação residencial, sai por apenas US$80.
Já outro fator importantíssimo é a diferença entre a Siri e a Alexa/o Google Assistente, o que acredito dispensar comentários, certo?
Pois bem. Partindo para o mercado de telas conectadas, a coisa fica ainda mais interessante. Considerando que atualmente o Amazon Echo Show 5 custa US$45, e que o Google Nest Hub 2 sai por US$100, por quanto você acha que a Apple deveria vender sua hipotética tela conectada, especialmente levando em conta que o iPad parte de US$350?
Mais do que isso, se a tela tiver funcionalidades mais limitadas que as de um iPad completo (ex: se a tela apenas servir como um controlador de objetos domésticos conectados, dispositivo FaceTime e porta-retratos), será que as pessoas toparão pagar uns US$150–200, ao invés dos US$45 a US$100 da concorrência? O FaceTime vale isso tudo? Será que elas iriam preferir desembolsar o preço cheio de um iPad para, pelo menos, ter todas as funcionalidades de um produto completo nas mãos?
E falando nisso…
O Natal do headset (de novo)
A entrada da Meta no mercado imersivo começou há mais de dez anos. Quando ela (que na época ainda se chamava Facebook) comprou a Oculus, já havia rumores de que a Sony estava se preparando pra lançar o PS VR, a HTC estava prestes a anunciar o headset Vive, e a Samsung já tentava emplacar o Gear VR (feito, inclusive, em parceria com a Oculus).
Além disso, não faltavam experimentos curiosos como o Google Cardboard — que usava o próprio telefone do usuário como tela imersiva. Na época, o Google Glass já era um fracasso, a Magic Leap já era uma eterna promessa e a Microsoft ainda estava a alguns anos de lançar o primeiro HoloLens, depois de ver o Kinect não corresponder às expectativas do mercado.
Cortando para o presente, a Meta com sua linha Quest é a única que verdadeiramente existe no mercado. Há outras alternativas, mas é como a Samsung no mercado de telefones dobráveis: na prática (e por enquanto), só ela realmente insiste até hoje.
Foi por isso que, quando veio o Apple Vision Pro com sua etiqueta de US$3.500, Mark Zuckerberg disse em mais de uma oportunidade que ele sabia que alguns aspectos do headset da Apple eram melhores que os da sua linha Quest, mas que essencialmente o produto de Cupertino não passaria de uma boa isca para atrair o interesse das pessoas para a sua própria linha. Dito e feito.
Essa comparação é injusta, já que assim como acontece com o HomePod 3E com a Apple TV, e com o Apple Watch, que também são bons presentes de Natal nos EUA., não dá para medir a variação das vendas do Apple Vision Pro com base no download de um app de configuração? Sim.
Ela é duplamente injusta, na verdade, já que esses produtos sequer são exatamente concorrentes? Também. Ninguém vai comprar um Apple Vision Pro para que sua criança de 8 anos fique jogando Fruit Ninja, certo? Mas talvez esse seja justamente o problema do Vision Pro, o que é óbvio que não é uma análise exatamente nova ou original.
Há mercados em que as pessoas estejam dispostas a pagar o chamado imposto Apple para ter acesso ao que elas acreditam ser um produto superior? É claro que sim. É o caso dos Macs, é o caso dos iPhones e, até certo ponto, é o caso do Apple Watch.
Mas especialmente no caso do Vision Pro, vimos a Apple abandonar o discurso de que “Só lançamos produtos quando eles estão prontos, e quando temos algo a acrescentar” para “Ah, aquilo? Nada! Foi só uma coisinha de luxo para early-adopters”, o que é o mais perto que chegaremos de vê-la admitir que o lançamento da forma como ele ocorreu — vou repetir: da forma como ele ocorreu — foi um erro.
Olhando para essa App Store americana pós-Natal, é impossível não observar que cinco dos seis apps mais baixados foram de produtos em mercados em que a Apple opera, mas nos quais nunca teve a menor chance de competir 4Ou seis de seis, considerando a igualmente injusta comparação entre o ChatGPT e a Apple Intelligence.. E é por isso que vejo com tanto ceticismo essa aparente intenção da Apple de entrar e concorrer no mercado de domótica, assunto que eu explorei mais a fundo aqui.
Ainda assim, dá para olhar para essa situação de uma forma um pouco mais otimista, se você não for o Tim Cook: as pessoas parecem estar relativamente entediadas com seus smartphones, e estão sinalizando para o mercado há pelo menos dois anos que estão dispostas a gastar com dispositivos (ou com acessórios 5Alô, vestíveis com IA!) que tragam novas experiências e possibilidades.
Se a Apple terá condição de suprir essa demanda, o tempo dirá. Mas com base em tudo o que ela mostrou até agora sobre seu preparo para lidar com a pós-mobile, o prognóstico não é exatamente encorajador.
E viva a concorrência.
Notas de rodapé
- 1Estranho no plural, não? Mas passe-partouts me pareceu esnobe demais.
- 2Cuja linha de produtos inclui telas conectadas, apesar de servirem para mais do que apenas exibir fotos.
- 3E com a Apple TV, e com o Apple Watch, que também são bons presentes de Natal nos EUA.
- 4Ou seis de seis, considerando a igualmente injusta comparação entre o ChatGPT e a Apple Intelligence.
- 5Alô, vestíveis com IA!